Introito
É recorrente a discussão acerca da autonomia e abstração da nota promissória vinculada a contrato e, apesar de disseminada jurisprudência sobre o tema, as dúvidas permanecem: Nota promissória emitida em decorrência de contrato perde sua autonomia e abstração? O devedor, afinal de contas, pode discutir a relação que deu causa à emissão do título?
As respostas a essas questões, ao contrário do que muitos pensam, não está propriamente na vinculação do título a um contrato. Não é a vinculação a um contrato que retira do título a autonomia e abstração.
O que determina se uma nota promissória é ou não autônoma e abstrata é a circulação!
Para melhor entender o assunto é necessário relembrar que a nota promissória surgiu, historicamente, pela necessidade de se dar circulação ao crédito. E essa circulação, por óbvio, somente atenderia as necessidades se o adquirente (endossatário) estivesse incólume às obrigações decorrentes do negócio (subjacente) celebrado entre o credor originário (endossante) e o devedor.
Em outras palavras, só haveria confiança na circulação de crédito se o novo portador do título não fosse perquirido sobre as causas do negócio que deu causa à sua emissão. O que se popularizou como ‘inoponibilidade das exceções pessoais ligadas ao negócio subjacente’, mais tarde introduzida no artigo 17 do Decreto 57.663/66.
Doutrina
Esse é o magistério dos mais cultuados doutrinadores:
“A abstração, como nota a doutrina moderna, foi construída não em favor do credor de boa-fé, mas para garantir a segurança da circulação. Ela atua basicamente, pois, em favor do terceiro que não foi parte da relação fundamental. Entre as partes, obviamente, a causa dessa emissão ou criação do título poderá ser invocada, processualmente, por via do direito pessoal do réu contra o autor ou em decorrência da Lei que os criou” Wille Duarte Costa (Títulos de Crédito, Ed. Del Rey 2003, pag. 303)
"Pelo subprincípio da abstração, o título de crédito, quando posto em circulação, se desvincula da relação fundamental que lhe deu origem. Note-se que a abstração tem por pressuposto a circulação do título de crédito. Entre os sujeitos que participaram do negócio originário, o título não se considera desvinculado deste" Fábio Ulhoa Coelho (Curso de Direito Comercial, vol. 1, 9 ed. atual 2005, Saraiva, São Paulo, p. 377)
"Cada obrigação que se estabelece é autônoma com relação às demais" Amador Paes de Almeida (Teoria e Prática dos Títulos de Crédito, ed. Saraiva, 18.ª ed., 1.998)
"A obrigação abstrata ocorre apenas quando o título está em circulação, isto é, quando põe em relação duas pessoas que não contratarem entre si, encontrando-se uma em frente da outra, em virtude apenas do título" Rubens Requião
“Essa conexão entre o título abstrato e o negócio fundamental não raro tem gerado problemas na prática. Por isso a abstração vem sendo minada na sua pureza, impossível de se aceitar em termos práticos esse excessivo formalismo (baseado na aparência jurídica) que, se de um lado dá um grau quase absoluto de segurança ao título, por outro lado pode ensejar negócios imorais acobertados pela impossibilidade de indagação da causa do título. Por isso a jurisprudência, coagida pela necessidade de fazer justiça, afasta muitas vezes a abstração para olhar além dela, a causa determinante do título, e o próprio legislador vai reduzindo ao mínimo os títulos abstratos” Waldírio Bulgarelli (Títulos de Crédito, Ed. Atlás, pag. 59)
Jurisprudência
E, se notarmos, Jurisprudência sobre o assunto são profusas:
TJSP, Relator Cesar Augusto Fernandes, Apelação nº 1184068-7: “A exeqüente detém um título de crédito dotado de autonomia. Como a execução trava-se entre emitente e tomador, exceções pessoais são oponíveis. Mas o ônus da prova pertence à parte executada, e não à parte exeqüente, porque esta tem a presunção de liquidez, certeza e exigibilidade da nota promissória. Essas características têm de ser desconstituídas por quem alega o vício, e não o contrário”… “De se destacar, outrossim, que a nota promissória, quando dada em garantia, não perde sua executividade se o negócio jurídico garantido também contiver esse dístico. Alega-se contrato de factoríng, não juntado; se tiver valores certos, vencimento ultrapassado e assinado por duas testemunhas, adentra o art. 585, II, Código de Processo Civil. Se for esse o caso, ainda que dada em garantia continua a executividade.”
TJSP, Relator Carlos Dias Motta, Apelação 1.299.664-2: “Assiste razão à apelante ao sustentar que, em princípio, a circunstância de uma nota promissória estar vinculada a contrato não a desnatura como título executivo. Entretanto, não tendo circulado, e ainda pelos outros motivos acima apresentados, permite-se a ampliação da discussão nos embargos, para exame do negócio causal, ou seja, do contrato de factoring.”
REsp. 243.762, Min. Eduardo Ribeiro: "Evidenciando que determinada nota promissória foi emitida em razão de negócio, será afetada por decisão pertinente ao contrato de que derivou. Daí não segue que o simples fato da vinculação retire a força própria do título"… “Caberá ao devedor a prova de descumprimento ou invalidade do contrato que lhe deu origem."
Conclusão
Restabelecida essa premissa, quanto a origem do título e sua circulabilidade, conclui-se que a abstração e autonomia da nota promissória não milita em favor daquele que recebeu o título em decorrência do próprio negócio celebrado com seu devedor, mas apenas em favor daquele que recebeu o título em decorrência de uma cessão de crédito – endosso cambial.
Logo, se o credor de uma nota promissória, isso é, aquele que a estiver executando, for verdadeiramente um terceiro, estranho ao negócio que lhe tenha dado origem, ela será autônoma e abstrata. Contra esse credor não se poderá admitir a discussão da causa subjacente ao título. Mas, por outro lado, se o título permanece em poder do credor original, isso é, se o título não circulou, perderá ele a qualidade de autônomo e abstrato, e ao devedor assistirá o direito de discutir a relação subjacente.
Mas, cumpre registrar, como nota a Jurisprudência acima, que a abstração e autonomia são apenas atributos da nota promissória, não são requisitos. Portanto, a perda da autonomia ou abstração não retira da nota promissória sua qualidade de título executivo – certeza, liquidez e exigibilidade.
Por isso, quando um Juiz ou Tribunal decide que uma nota promissória vinculada não se presta a instruir ação de execução, diante da ausência de autonomia e abstração, com o devido respeito, entendemos se tratar de erro crasso, seja ela vinculada a que contrato for – Compra e Venda, Confissão de Dívida, Fomento Mercantil.
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