Cylmar Pitelli Teixeira Fortes e Thaís de Souza França

 

Tema proposto

A cessão de direitos creditórios originários de compra e venda mercantil ou prestação de serviços tem se baseado, com grande frequência, em documentação lastreada na chamada “Duplicata Virtual”, quer em função da dinâmica do mercado ou da evolução dos documentos eletrônicos.

Dois casos práticos podem ilustrar bem essa situação. Um vendedor, por exemplo, em vez de emitir o papel Duplicata de Venda Mercantil, emite simplesmente a Nota Fiscal Eletrônica (“NFe”) da compra e venda realizada e anota a existência de Duplicatas representativas do pagamento a prazo ajustado em campo específico da NFe. Depois, para efetivamente cobrar o comprador dos produtos, ele envia um boleto bancário com o número da Duplicata.

Noutro exemplo, o vendedor opta por emitir a Duplicata em formato eletrônico, isto é, em substituição ao papel, utilizando-se da assinatura eletrônica com base na Medida Provisória n° 2.200-2/2001.

Qual seria a posição da jurisprudência a respeito dessa recente conduta em dispensar a emissão física (isto é, em papel) do título de crédito Duplicata? Seria válido, por exemplo, um cessionário adquirir créditos representados por Duplicatas emitidas por assinatura eletrônica? 

A seguir, conclusões baseadas na legislação em vigor e jurisprudência a respeito do tema.
 

Os dois tipos mais comuns de duplicata virtual – O boleto bancário com força executiva e o título de crédito emitido na forma   eletrônica – Posição jurisprudencial

O dinamismo das relações comerciais somado à possibilidade de protesto do título mediante indicação eletrônica dos dados inerentes à relação havida fez com que a emissão das duplicatas fosse dispensada em situações em que o sacador possua a fatura, ou NFe e respectivo comprovante de entrega da mercadoria, ou prestação de serviços.
 

Tornou-se praxe mercantil a emissão pelo sacador de um boleto bancário com dados da duplicata e o respectivo envio para o sacado para pagamento. Frise-se, a emissão do título é dispensada nesses casos em virtude da comprovação da existência de um crédito do sacador perante o sacado.

Nessas situações, o comprovante de recebimento das mercadorias ou prestação de serviços poderá ser interpretado como aceite presumido e até mesmo a notificação sobre a cessão de crédito e respectiva confirmação sobre a regularidade ou execução da cobrança poderá ser interpretada como aceite em apartado pelo credor.

Uma vez constatada a inadimplência do sacado nessas situações, os Tribunais têm admitido a execução do boleto bancário, desde que acompanhado da respectiva documentação que comprove a existência da relação subjacente (instrumento de protesto, nota fiscal e comprovante de entrega da mercadoria ou prestação de serviços):
 

“CAMBIAL – Duplicata – Possibilidade das duplicatas e letras de câmbio serem representadas por ‘slips’, ou seja, boletos bancários ou outros documentos, criados por meios da informática que contenham os requisitos do pagamento de quantia líquida e certa – Execução instruída com notas fiscais e instrumentos de protesto – Admissibilidade – Recurso provido”.
(TJSP, Agravo de Instrumento nº 0028828-55.2013.8.26.0000, 23ª Câmara de Direito Privado, Relator Des. J.B. Franco de Godoi, J. 24.04.2013)

 

“APELAÇÃO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. TÍTULOS DE CRÉDITO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE DUPLICATA. Considerando os usos e costumes comerciais, é possível a emissão de duplicata “virtual”, quando comprovada a relação comercial subjacente. Apelação provida”.
(TJRS, Apelação Cível nº 70031227879, 11ª Câmara Cível, Relator Des. Bayard Ney de Freitas Barcellos, J. 01.09.2010)

 

“EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – BOLETO BANCÁRIO – DUPLICATA VIRTUAL – PROTESTADA POR INDICAÇÃO ACOMPANHADA DE NOTA FISCAL COM COMPROVANTE DE ENTREGA DAS MERCADORIAS – VALIDADE – TÍTULO HÁBIL A EMBASAR A EXECUÇÃO – RECURSO PROVIDO. O protesto por indicação da duplicata virtual representada por boleto bancário é expressamente autorizado por lei, desde que comprovada a entrega e o recebimento da mercadoria objeto do contrato de compra e venda mercantil firmado entre as partes litigantes”.
(TJMG, Apelação nº 1.0024.09.689222-9/001, 16ª Câmara Cível, Relator Des. Otávio Portes, J. 20.10.2010)

 

“(…) A lei admite a existência da duplicata virtual a qual não tem como
haja seu lançamento contábil. A existência da duplicata virtual encontra-se demonstrada pelas indicações constantes do boleto bancário…”
(TJRJ, Apelação nº 0027076-24.2006.8.19.0021, 18ª Câmara Cível, Relator Des. Rogério de Oliveira Souza, J. 26.02.2008.)

 
Finalmente, o Colendo Superior Tribunal de Justiça consolidando o seu posicionamento sobre o tema após o julgamento de embargos de divergência que findaram o dissenso jurisprudencial existente entre a Terceira e a Quarta Turma daquela Corte, admitiu a execução da duplicata virtual, protestada por indicação pelo credor, acompanhada de documento comprobatório da entrega da mercadoria:
 

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. DIVERGÊNCIA DEMONSTRADA. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DUPLICATA VIRTUAL. PROTESTO POR INDICAÇÃO. BOLETO BANCÁRIO ACOMPANHADO DO INSTRUMENTO DE PROTESTO, DAS NOTAS FISCAIS E RESPECTIVOS COMPROVANTES DE ENTREGA DAS MERCADORIAS. EXECUTIVIDADE RECONHECIDA.
1 – Os acórdãos confrontados, em face da mesma situação fática, apresentam solução jurídica diversa para a questão da exequibilidade da duplicata virtual, com base em boleto bancário, acompanhado do instrumento de protesto por indicação e das notas fiscais e respectivos comprovantes de entrega de mercadorias, o que enseja o conhecimento dos embargos de divergência.
2 – Embora a norma do art. 13, § 1º, da Lei 5.474/68 permita o protesto por indicação nas hipóteses em que houver a retenção da duplicata enviada para aceite o alcance desse dispositivo deve ser ampliado para harmonizar-se também com o instituto da duplicata virtual, conforme previsão constante dos arts. 8º e 22 da lei 9.492/97.
3 – A indicação a protesto das duplicatas mercantis por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados encontra amparo no artigo 8º, parágrafo único, da Lei 9.492/97. O art. 22 do mesmo Diploma Legal, a seu turno, dispensa a transcrição literal do título quando o Tabelião de Protesto mantém em arquivo gravação eletrônica da imagem, cópia reprográfica ou micrográfica do título ou documento da dívida.
4 – Quanto à possibilidade de protesto por indicação da duplicata virtual, deve-se considerar que o que o art. 13 § 1º da Lei 5.474/68 admite, essencialmente, é o protesto da duplicata com dispensa de sua apresentação física, mediante simples indicação de seus elementos ao cartório de protesto. Daí, é possível chegar-se à conclusão de que é admissível não somente o protesto por indicação na hipótese de retenção do título pelo devedor, quando encaminhado para aceite, como expressamente previsto no referido artigo, mas também na de duplicata virtual amparada em documento suficiente.
5 – Reforça o entendimento acima a norma do § 2º do artigo 15 da Lei 5.474/68, que cuida de executividade da duplicata não aceita e não devolvida pelo devedor, isto é, ausente o documento físico, autorizando sua cobrança judicial pelo processo executivo quando esta haja sido protestada mediante indicação do credor, esteja acompanhada de documento hábil comprobatório da entrega e recebimento da mercadoria e o sacado não tenha recusado o aceite pelos motivos constantes dos arts. 7º e 8º da Lei.
6 – No caso dos autos, foi efetuado o protesto por indicação, estando o instrumento acompanhado das notas fiscais referentes às mercadorias comercializadas e dos comprovantes de entrega e recebimento das mercadorias devidamente assinados, não havendo manifestação do devedor à vista do documento de cobrança, ficando atendidas, suficientemente, as exigências legais para se reconhecer a executividade das duplicatas protestadas por indicação.
7 – O protesto de duplicata virtual por indicação apoiada em apresentação do boleto, das notas fiscais referentes às mercadorias comercializadas e dos comprovantes de entrega e recebimento das mercadorias devidamente assinados não descuida das garantias devidas ao sacado e ao sacador.
8 – Embargos de divergência conhecidos e desprovidos”.
(Embargos de Divergência em REsp nº 1.024.691-PR, Relator Min. Raul Araújo,  2ª Seção, j. 22/08/2012, DJe de 29.10.2012.)
 

Assim, a cobrança judicial de boletos bancários acompanhados dos respectivos documentos comprobatórios da relação subjacente é plenamente aceitável pelos tribunais brasileiros, utilizando subsidiariamente o disposto no artigo 15 da Lei de Duplicatas (Lei 5.474/1968), sendo dispensada a apresentação do documento físico:
 

“Art. 15 – A cobrança judicial de duplicata ou triplicata será efetuada de conformidade com o processo aplicável aos títulos executivos extrajudiciais, de que cogita o Livro II do Código de Processo Civil, quando se tratar:
l – de duplicata ou triplicata aceita, protestada ou não;
II – de duplicata ou triplicata não aceita, contanto que, cumulativamente:
a) haja sido protestada;
b) esteja acompanhada de documento hábil comprobatório da entrega e recebimento da mercadoria; e 
c) o sacado não tenha, comprovadamente, recusado o aceite, no prazo, nas condições e pelos motivos previstos nos arts. 7º e 8º desta Lei…”
 

O Código Civil dispõe expressamente sobre a possibilidade de emissão dos títulos de crédito por meio de registros eletrônicos, nos termos do § 3º do artigo 889:
 

“Art. 889 – Deve o título de crédito conter a data da emissão, a indicação precisa dos direitos que confere, e a assinatura do emitente.
(…)
§ 3o – O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo”.
 

As declarações constantes nas duplicatas eletrônicas, quando atestadas pela entidade certificadora e assinadas por meio de certificação digital, têm a veracidade presumida quanto ao seu conteúdo e signatários, por força da Medida Provisória 2.220-2/2001, que regulamentou a utilização de certificado digital no país.

A possibilidade de emissão da duplicata por meio eletrônico, associada à veracidade do documento assinado ou aceito eletronicamente, torna o documento emitido e aceito de forma eletrônica tão válido quanto à duplicata física aceita de forma tradicional.

Assim, se o mero boleto bancário acompanhado de NF e canhoto vale para efeitos de substituição da duplicata física, a duplicata emitida e endossada na forma eletrônica com mais razão, validade.

Ademais, a referida Medida Provisória admite em seu parágrafo 2º do artigo 10 a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido:
 

“Art. 10 – Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.
(…)
§ 2º – O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento”.
 

A aplicação do referido dispositivo possibilita às partes, por exemplo, admissão da assinatura digitalizada nos documentos, desde que as partes (principalmente o sacado) admitissem referido meio como válido. 

De toda forma, tanto a emissão do boleto bancário acompanhados do respectivos documentos comprobatórios da relação subjacente, quanto a duplicata emitida e aceita eletronicamente prescindem da existência da duplicata física, não desconfiguram sua  qualidade de título executivo e tampouco colocam em risco o mercado.

Finalmente, a prática de simulação de uma compra e venda mercantil para a emissão de duplicatas é anterior a existência da duplicata virtual, sendo impossível atribuir a existência de duplicata frias ou emitidas em pluralidade à implantação das duplicatas virtuais, pois a materialização do título de crédito não é suficiente para impedir a ocorrência desse crime.
 

Conclusão
 

A jurisprudência consolidou o entendimento de validade da substituição da emissão duplicata física por boleto bancário acompanhado de Nota Fiscal ou fatura e comprovação da regularidade da relação subjacente, levando em consideração, como medida de bom senso, a dinâmica do mercado.

Quanto à emissão eletrônica, com maior razão a validade, já que representa um avanço em relação ao boleto bancário, na medida em que nosso ordenamento jurídico permitiu a emissão de títulos de crédito na forma eletrônica (§ 3º do artigo 889 do Código Civil), assim como conferiu, por meio da Medida Provisória nº 2.200-02/2001 (que dispõe sobre a assinatura digital e estabelece a ICP-Brasil) a validade aos documentos assinados eletronicamente.

Por fim, ressaltamos que criticar a validade da duplicata virtual pela simples possibilidade de emissão em duplicidade seria o equivalente a afirmar que a duplicata em papel também não teria validade, pois a emissão do título nessa forma também não é suficiente impedir essa prática de fraude, ou a emissão simulada.

Caberá ao cessionário, como forma de assegurar o seu crédito e evitar se submeter a disputa com outros credores, comunicar a aquisição do crédito ao sacado tão logo a referida transmissão seja formalizada, atendendo ao disposto no artigo 290 do Código Civil:
 

“Art. 290. A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita”.

 
 

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