por Vinicius de Barros
Artigo publicado no JOTA.info
Como é cediço, os sócios em regra não respondem pelas dívidas da sociedade, mesmo as de natureza fiscal. Essa regra vale inclusive ao caso do sócio de empresa que não possui ativos suficientes para pagamento dos seus passivos. Há, no entanto, exceções.
Os sócios, especialmente os detentores de poderes de administração, podem responder pessoalmente pelas obrigações fiscais da sociedade, caso o fisco comprove a prática de atos dolosos ou fraudulentos, contrários à legislação ou contrato social, ou o encerramento irregular da sociedade, situação mais típica de responsabilização dos sócios.
Na prática não é incomum ver abusos cometidos por procuradores e juízes. Os primeiros muitas vezes pedem a responsabilização pessoal dos sócios pelas dívidas da sociedade pela mera inadimplência, mesmo sem provar a prática de atos ilícitos ou o encerramento irregular da empresa. Já os juízes deferem os pedidos dos procuradores sem se atentarem à falta dos requisitos legais, tornando os sócios devedores do dia para a noite e expondo-os ao risco de penhora de seus bens e contas bancárias.
Os sócios, mesmo aqueles que há anos saíram da sociedade, acabam sendo surpreendidos com a cobrança das dívidas fiscais deixadas pelas empresas. Só ficam sabendo que são devedores quando recebem a comunicação do judiciário, ou quando são informados pelo banco que suas contas estão bloqueadas a pedido da justiça. E pior, em muitos dos casos os sócios não podem sequer se defender, pois não possuem bens suficientes para garantir a dívida – que no mais das vezes é altíssima – condição para a apresentação dos embargos à execução. É verdade que há situações em que a pessoa pode se defender mesmo sem garantir o débito, por meio da chamada “exceção de pré-executividade”, mas nem sempre isso é possível.
Mesmo quem tem patrimônio suficiente para garantir as dívidas deixadas pela sociedade passa pelo constrangimento de ver uma parcela dos seus bens ficar indisponível durante o trâmite do processo – 5 anos, no mínimo – e ter que aguardar o judiciário decidir que ele não deve responder pelas obrigações fiscais da sociedade. Enquanto o judiciário não corrige o seu erro, o sócio carrega injustamente a pecha de devedor e sofre prejuízos e danos, inclusive de ordem moral.
Com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (“CPC/15”), esperava-se que esses abusos chegariam ao fim. Isso porque o CPC/15 trouxe como novidade o chamado “incidente de desconsideração da personalidade jurídica”, previsto nos artigos 133 a 137. O referido incidente prevê, em síntese, que antes de ser incluído no processo na condição de devedor e sofrer a penhora de seus bens, o sócio será chamado para impugnar o pedido do credor de responsabilizá-lo pelas dívidas da sociedade. Só então o juiz decide se o sócio deve ou não responder pelas obrigações da empresa.
A nosso ver, o CPC/15 corrigiu uma falha até então existente na legislação processual, que possibilitava que uma pessoa fosse responsabilizada e tivesse seus bens constritos por dívida que originalmente não era dela, sem dar a ela a oportunidade de se defender. Há quem defenda o contrário, por entender que o incidente de “incidente de desconsideração da personalidade jurídica” possibilita ao sócio desviar ou esconder seu patrimônio enquanto discute com o credor se deve ou não responder pelas obrigações da sociedade. Respeitamos quem pensa assim, pois de fato o procedimento dá margem aos malfeitores, mas não podemos esquecer que o advogado do credor tem à sua disposição medidas processuais para se precaver contra atos maliciosos do sócio (por exemplo, a tutela de urgência de natureza cautelar para arresto de bens, caso comprovado o risco de dilapidação do patrimônio).
Desde antes da entrega em vigor do CPC/15 os operadores do Direito já divergiam sobre a aplicação ou não do incidente de desconsideração da personalidade jurídica aos processos de execução fiscal, cada qual com seus argumentos, muitos deles plausíveis. Previa-se que o tema geraria amplo debate nos Tribunais, como de fato está acontecendo.
No Tribunal Regional Federal da 3ª Região, a maioria dos precedentes caminha no sentido de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica não se aplica aos processos de execução fiscal, especialmente se o pedido de responsabilização do sócio tiver como fundamento as disposições do Código Tributário Nacional. Eis um dos seus mais recentes julgados:
“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. CONTRADIÇÃO. OBSCURIDADE. ERRO MATERIAL. REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO FISCAL. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INAPLICABILIDADE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS.
1. Esta Corte Regional já vem se posicionando no sentido de que "O pedido de redirecionamento da execução fiscal, em razão da Súmula 435/STJ e artigo 135, III, CTN, não se sujeita ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, de que trata o artigo 133 e seguintes do CPC/2015 e artigo 50 do CC/2002".
2. De fato, os sócios da empresa executada são agravados, devendo ser sanado o erro material constante da ementa do acórdão recorrido, quando menciona que é "lídima a posição dos agravantes no polo passivo da execução fiscal".
3. Embargos de declaração acolhidos.” (AI – AGRAVO DE INSTRUMENTO – 581685 / SP, 0008938-03.2016.4.03.0000, Relator(a) DESEMBARGADOR FEDERAL HÉLIO NOGUEIRA, Órgão Julgador PRIMEIRA TURMA, Data do Julgamento 22/11/2016)
De acordo com alguns desses precedentes, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica somente seria aplicável ao pedido de redirecionamento ao sócio fundamentado no artigo 50 do Código Civil (ou seja, casos de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial). Ocorre que na maioria dos casos os pedidos não são fundamentados no Código Civil – e agora os casos devem ser mais raros ainda, já que os procuradores evitarão se sujeitar ao incidente de desconsideração.
O Tribunal de Justiça de São Paulo vai no mesmo sentido, julgando desnecessária a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica nos processos de execução fiscal, como se denota pelo julgado abaixo:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – Execução fiscal – Insurgência contra decisão que determinou à Fazenda Pública que promova o requerimento de inclusão do sócio da executada no polo passivo da ação por meio de incidente de desconsideração da personalidade jurídica – Descabimento – Redirecionamento da execução fiscal aos sócios que prescinde do incidente – Hipótese de responsabilidade tributária prevista no art. 135 do CTN – Precedentes deste Tribunal – Decisão reformada – Recurso provido.” (Agravo de Instrumento 2139472-26.2016.8.26.0000, Relator(a): Eutálio Porto, Comarca: São José do Rio Preto, Órgão julgador: 15ª Câmara de Direito Público, Data do julgamento: 10/11/2016)
Ou seja, frustrando a expectativa de quem acreditava que o sócio não seria mais surpreendido com a cobrança de dívidas de terceiro e a penhora de bens, não sem antes se defender contra a pretensão do fisco, os Tribunais estão entendendo que a nova regra prevista no CPC/15 não se aplica aos processos de execução fiscal, o que significa que para a maioria dos julgadores o procedimento continua sendo o mesmo de antes, isto é, sem poder se defender, o sócio torna-se devedor, tem seus bens penhorados, e só consegue se defender amplamente se tiver patrimônio suficiente para garantir a totalidade da dívida da sociedade, situação absurda que acreditávamos que havia chegado ao fim.
A palavra final deve vir do Superior Tribunal de Justiça, órgão responsável por uniformizar temas como este, que ainda não se pronunciou.
Resta a nós, advogados dos contribuintes, trabalharmos para que o tema chegue logo ao Superior Tribunal de Justiça, e que lá seja reconhecida a aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica aos processos de execução fiscal.
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