Matéria publicada no Valor Econômico, edição de 23 de outubro de 2018
Uma empresa em recuperação judicial foi condenada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) por ter se apropriado de recebíveis que, antes do processo, haviam sido transferidos para um Fundo de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDC). Ela terá que restituir tais valores e ficará impedida de receber os pagamentos que ainda não venceram – e são parte da negociação que foi feita com o fundo.
A ação envolve a Carjaval Informações, dona do portal GuiaMais e das listas telefônicas Listel e Editel, e o Credit Brasil Fundo de Investimento de Direitos Creditórios, administrado pelo Banco Petra. Eles discutem sobre uma carteira de recebíveis que é formada basicamente por pagamentos feitos, de forma parcelada, pelos anunciantes dos canais da companhia. São cerca de R$ 1 milhão envolvidos.
O caso foi levado à Justiça porque as partes divergem sobre a natureza da operação de transferência desses recebíveis. A empresa sustenta, no processo, que se tratou de uma cessão fiduciária – a chamada trava bancária. Nessa modalidade, a companhia, ao tomar crédito, oferece títulos que têm a receber como garantia do pagamento à instituição financeira.
Já o fundo alega ter comprado o direito de cobrar esses recebíveis diretamente dos anunciantes. Na ação consta que ele antecipou o pagamento desses títulos à empresa, por um valor um pouco mais baixo que o total, e em troca faria a cobrança, por meio do envio de boleto aos anunciantes, e receberia as quantias parceladas.
Existem inúmeras discussões sobre esse tema no Judiciário. De um lado as empresas em crise, que tentam incluir a dívida no plano de recuperação e, dessa forma, liberar os recebíveis até então travados para dar fôlego ao seu caixa, e de outro lado as instituições financeiras, que brigam para se manter fora do processo e permanecer em posse de tais valores.
A jurisprudência vem se consolidando em favor das instituições financeiras. Os tribunais de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo, têm reiteradas decisões nesse sentido e já há manifestação sobre o assunto também no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O acórdão envolvendo a Carjaval, no entanto, segundo advogados, é um dos poucos que, além de impedir o uso dos recebíveis pela empresa em recuperação, determina a restituição do que teria recebido dos anunciantes de forma indevida (processo nº 1117906-63.2015.8.26.0100).
Os desembargadores que julgaram o caso, na 18ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, entenderam não haver dúvida de que as partes celebraram "um contrato de cessão e aquisição de direitos de créditos e outras avenças, com transferência onerosa e definitiva da posição de credor".
"A ré-apelante [empresa] objetivava, por intermédio do negócio, transferir seus recebíveis (créditos cedidos); a autora [FIDC], de seu turno, visava adquirir os direitos creditórios mediante pagamento de preço para posteriormente receber os valores derivados dos títulos pendentes de pagamento", afirma em seu voto o relator do caso, desembargador Ramon Mateo Junior.
Representante do FIDC no processo, o advogado Marcelo Augusto de Barros, do escritório Teixeira Fortes, diz que a empresa tentou se aproveitar do processo de recuperação para tentar receber duas vezes o mesmo crédito. "A primeira mediante a cessão dos recebíveis, que o fundo, aliás, pagou à vista, e a segunda por meio da cobrança desses mesmos créditos diretamente aos anunciantes."
Ele afirma que a empresa, para impedir o fundo de receber tais créditos, chegou a publicar um aviso no seu site alertando os anunciantes de que os boletos enviados pelo FIDC eram falsos, que tratava-se de golpe e que os pagamentos deveriam ser feitos diretamente a ela. A Carjaval Informações entrou em processo de recuperação judicial no ano de 2015, com dívidas de R$ 120 milhões.
Para Julio Mandel, do Mandel Advocacia, a exclusão dos recebíveis dos processos de recuperação dificulta a reestruturação das empresas. "Porque tudo aquilo que entra no caixa acaba não podendo ser usado pela companhia", afirma. "O tratamento que se dá aos bancos coloca em risco a própria efetividade da Lei de Recuperação [nº 11.101, de 2005]."
O advogado chama a atenção, no entanto, que há uma nova discussão em torno desse assunto. Trata sobre uma cláusula que consta em praticamente todos contratos firmados com instituições financeiras – e têm os recebíveis como garantia – prevendo o pagamento antecipado da dívida no caso de a empresa entrar em processo de recuperação judicial.
Por causa dessa cláusula, é de praxe, nesses casos, o banco reter diretamente da conta do cliente toda a garantia oferecida (que cobre parcelas em atraso e também o que ainda não tinha vencido). Essa prática, diz Mandel, começou a ser coibida pela Justiça.
A 2ª Câmara de Direito Empresarial do TJ-SP, por exemplo, já se posicionou contra a aplicação. Os desembargadores entenderam, ao analisar um desses casos, que os bancos só poderiam se apropriar das parcelas no seu vencimento (processo nº 2048753-61.2017.8.26.0000).
Não haveria motivo para antecipar o pagamento do valor total do contrato, na visão dos magistrados, já que tais garantias não se sujeitam ao plano de recuperação da devedora e, por esse motivo, não haveria mudança alguma em relação às condições previstas.
O advogado foi um dos representantes da Carjaval Informações, no processo julgado pelo TJ-SP, mas preferiu não se manifestar sobre o caso.
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