Por Cylmar Pitelli Teixeira Fortes
Publicado em 05 de janeiro de 2019 no DCI – Diário Comércio Indústria & Serviços
No dia 21 de dezembro de 2018 foi publicada a lei 13.775, que trouxe para o mundo jurídico a figura da “duplicata sob a forma escritural”. A lei passará a produzir efeitos em 120 dias, contados da data da publicação, e representa notável avanço no sentido de estabelecer um suporte eletrônico para as operações mercantis. Mas ao mesmo tempo em que significa um passo sobremaneira importante para tornar a concessão do crédito mais eficiente, e permitir a circulação dos títulos de forma mais segura, o texto final da lei representou lamentável perda de oportunidade.
Desde que Johannes Gutenberg inventou a imprensa, em 1450, até o advento dos computadores, o papel cumpriu praticamente sozinho a função de dar suporte ao registro de informações, o que nos permite divisar os documentos jurídicos em dois grandes grupos: aqueles cujo suporte é o papel, e os eletrônicos.
As duplicatas, no Brasil, têm previsão na Lei 5.474, editada no longínquo ano de 1968, e toda sua construção jurídica, assim como a dos princípios do direito cambiário atinentes à sua circulação (cartularidade, literalidade e autonomia), sempre estiveram estreitamente associadas ao suporte papel.
Desde então, os documentos eletrônicos haviam sido apenas marginalmente referidos na legislação brasileira, pela norma que criou a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira, ICP-Brasil, de 2001, com respeito à assinatura digital (MP 2.200-2, de 24 de Agosto de 2001). É verdade que nosso Código Civil, de 2002, também veiculou disposição expressa permitindo a emissão de títulos de crédito “a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente” (artigo 899, parágrafo 3º). Mas a redação imprecisa e a pouca aplicação prática do dispositivo, de resto refutado por parte da doutrina, negaram-lhe aptidão para assegurar eficácia do meio eletrônico como suporte efetivo dos títulos de crédito.
Assim é que a evolução das relações comerciais e as crescentes dificuldades práticas que o lastro papel impunham à desejada e necessária circulação das duplicatas mercantis e de serviços, em especial a partir dos anos 1990, deram ensejo a uma série de arranjos de ordem pragmática, mas desprovidas de lastro legal.
Foi nesse contexto que a jurisprudência brasileira – não sem uma ou outra vacilação – passou a chancelar a praxe do mercado e admitir a execução judicial contra o devedor inadimplente a despeito do lastro papel da duplicata inadimplida (desde que preenchidos outros requisitos). Nesse sentido, confira-se, por todas, a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, nos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.024.691-PR, Relator Min. Raul Araújo, 2ª Seção, julgado em 22/08/2012, DJe de 29.10.2012.
No âmbito do mercado de capitais, a Comissão de Valores Mobiliários passou igualmente a dispensar o lastro papel para fins de aquisição do respectivo crédito por Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, exigindo apenas documentação que fosse “necessária e suficiente” para cobrar o devedor (Ofício Circular CVM SIN número 5/2014).
A nova lei muda esse cenário e traz expressa previsão para o suporte eletrônico. Diz que as duplicatas podem agora ser emitidas sob a forma escritural, para circulação como efeito comercial, mediante lançamento em sistema eletrônico de escrituração, gerido por entidades que exerçam essa atividade. No âmbito do referido sistema eletrônico, devem ocorrer a escrituração de tudo o quanto inerente à duplicata, como apresentação, aceite, devolução, pagamento, transferência, endosso, aval, informações referentes à operação com base na qual foi emitida, e os ônus e gravames constituídos sobre as duplicatas (artigo 4º.).
A emissão das duplicatas em sistema eletrônico de escrituração veio para conferir maior segurança às transações e melhorar o ambiente de negócios. São várias as razões para se afirmar isso. O novo diploma legal faz aumentar significativamente a veracidade das operações que servem de lastro à emissão das duplicatas, eliminando o risco de que um mesmo título seja usado como garantia mais de uma vez, eis que as comunicações de apresentação, aceite e endosso, serão realizadas pelo gestor do sistema eletrônico; pequenas e médias empresas, que têm maior dificuldade de comprovar idoneidade e solidez financeira para negociar esses títulos, tendem a se beneficiar em razão da maior transparência conferida pelo novo sistema; também o histórico de faturamento e operações, que agora ficará registrado nas infraestruturas do mercado, gerará maior confiança em favor do empresário tomador de crédito; com a nova lei, passam a constar do registro da duplicata informações sobre as mercadorias a que se refere e forma de pagamento; o título só será considerado quitado se essa forma for respeitada; condutas inidôneas, amiúde vistas na militância jurídica, como por exemplo as que negam a natureza das operações, depois de regularmente celebradas, ficarão mais restritas. Com essa maior segurança, será natural que novos atores se interessem por esse nicho no mercado de crédito; com o aumento de participantes, as taxas podem se tornar progressivamente mais atrativas.
São, assim, diversos e bastante relevantes os efeitos positivos esperados a partir do referido prazo de vacância (120 dias). Contudo, sem prejuízo de tais aspectos, é lamentável notar que mais uma vez o interesse comum – dos empresários, consumidores, bancos, fomentadores, fundos de recebíveis, enfim, todos – tenha sucumbido ao lobby setorial realizado no Congresso Nacional, e que redundou no texto ao fim e ao cabo aprovado. É que o projeto original do deputado Julio Lopes trazia inovações mais agudas e mais interessantes a todos, exceto ao pequeníssimo e privilegiado grupo que trabalhou ativamente para manter seus privilégios.
O texto original dispensava expressamente o protesto “das duplicatas e de outros títulos emitidos sob a forma escritural, bem como dos títulos objeto de registro ou depósito centralizado, para todos os fins, inclusive para a prova da inadimplência e do descumprimento de obrigação”. Dizia ainda que independeria de protesto “a cobrança judicial da duplicata inadimplida emitida sob a forma escritural ou objeto de registro ou depósito centralizado”. O protesto, na versão original, era uma faculdade, uma opção do credor, como recomenda uma visão moderna e pragmática do direito. O mercado pede agilidade e eficiência, não obrigações que não interessam a ninguém – exceto a quem lucra com uma burocracia no mais das vezes inútil. A obrigação de protestar não orna com o direito moderno, é arcaica, obsoleta, inútil enfim. Com a evolução tecnológica em apreço, não faz nenhum sentido que o credor, já fustigado pelo inadimplemento do devedor, tenha que cumprir a via crucis do protesto, tendo ainda, em muitos Estados da Federação, que pagar por isso antecipadamente! Infelizmente, esses pontos foram derrubados e em seu lugar foram inseridos outros, que asseguraram a manutenção do verdadeiro feudo cartorial com que ainda temos que conviver. Em matéria de lastro eletrônico de transações comerciais, evoluímos no plano legal. Mas fica a amarga sensação de chance perdida.
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