Conforme noticiamos no artigo publicado no dia 15/10/2018, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça entendeu pela relativização da penhora do salário do devedor para o pagamento de crédito sem natureza alimentar, no Embargos de Divergência no Recurso Especial 1.582.475/MG.
A decisão foi recebida com otimismo pela área de recuperação de crédito, não só por ampliar os ativos passíveis de penhora, mas, também, por demonstrar que o Judiciário está atento às situações em que a impenhorabilidade do salário é utilizada pelo devedor como argumento para não pagar as suas obrigações.
Em outras palavras, a possibilidade de penhorar salário chama os devedores à responsabilidade, reconhecendo que terceiros não podem ser prejudicados pelo mau uso dos seus recursos financeiros, o que por sua vez confere maior efetividade aos processos de execução, precisamente nos casos em que na falta de outros bens penhoráveis como imóveis ou veículos, por exemplo, o credor toma conhecimento que o devedor aufere renda considerável, mas não paga sua dívida por “recalcitrância”.
O Superior Tribunal de Justiça proferiu novo acórdão relativizando a impenhorabilidade do salário para o pagamento de crédito sem natureza alimentar, com voto do Ministro Raul Araújo e que ressaltou que a medida seria possível em razão do artigo 833 do novo Código de Processo Civil não conter mais o adjetivo “absolutamente”, indicando a possibilidade de sua mitigação pelo julgador, a depender do caso concreto.
A nova decisão do STJ é o indicativo de que a medida será pacificada pela Corte e, embora não seja ainda vinculativa, é certo que suas orientações exercem forte influência dos Juízes e Tribunais de Justiça, que não hesitarão em aplicar o julgado aos casos em que ficar demonstrado que o devedor não paga os seus débito por mera recalcitrância.
Contextualização da impenhorabilidade do salário
O Código de Processo Civil de 1973 era expresso ao dispor no artigo 649 a impenhorabilidade absoluta de determinados bens, entre eles, o salário, previsto no inciso IV da referida norma:
“Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
[…]
IV – os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal;”
A exceção à impenhorabilidade do salário era regulada pelo parágrafo 2º do artigo 649 do CPC/73, para o pagamento de prestação alimentícia:
“§ 2° O disposto no inciso IV do caput deste artigo não se aplica no caso de penhora para pagamento de prestação alimentícia.”
No entanto, ainda na vigência do CPC/73, o Superior Tribunal de Justiça relativizou a impenhorabilidade do salário para penhora de pagamento de dívida não alimentícia, desde que a constrição não ferisse a dignidade do devedor e não interferisse na sua subsistência e/ou a de sua família, conforme o julgado com voto do Ministro Sidnei Benetti no Recurso Especial n° 1.285.970-SP (2011/0235653-4)[1].
No atual Código de Processo Civil, o rol de bens impenhoráveis está expresso no artigo 833 e que prevê igualmente a impenhorabilidade do salário no inciso IV, ressalvada a possibilidade de sua constrição para o pagamento de crédito alimentício de qualquer natureza e penhorabilidade da importância que exceder 50 salários mínimos, dispostos no parágrafo 2°:
“Art. 833. São impenhoráveis:
[…]
IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2°;
[…]
§ 2° O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º , e no art. 529, § 3º .”
Mitigação da impenhorabilidade do salário
Diferente do artigo 649 do CPC/73, o artigo 833 do CPC/15 não contém o adjetivo “absolutamente” impenhorável, o que para o autor Bruno Garcia Redondo[2] indica que a impenhorabilidade dos bens relacionados nessa norma seria relativa, sendo essa a tese do Superior Tribunal de Justiça para relativizar a penhora do salário do devedor, no voto proferido pelo Ministro Raul Araújo[3]:
“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. AÇÃO DE DESPEJO COM COBRANÇA DE ALUGUÉIS RESIDENCIAIS. PENHORA SOBRE PERCENTUAL DA REMUNERAÇÃO DO DEVEDOR. POSSIBILIDADE (CPC, ART. 833, § 2º). AGRAVO INTERNO PARCIALMENTE PROVIDO COM PARCIAL PROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL.
1. O Novo Código de Processo Civil, em seu art. 833, deu à matéria da impenhorabilidade tratamento um tanto diferente em relação ao Código anterior, no art. 649. O que antes era tido como “absolutamente impenhorável”, no novo regramento passa a ser “impenhorável”, permitindo, assim, essa nova disciplina, maior espaço para o aplicador da norma promover mitigações em relação aos casos que examina, respeitada sempre a essência da norma protetiva. Precedente: EREsp 1.582.475/MG, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 03/10/2018, REPDJe 19/03/2019, DJe de 16/10/2018.
2. Descabe manter imune à penhora para satisfação de créditos proveniente de despesa de aluguel com moradia, sob o pálio da regra da impenhorabilidade da remuneração (CPC, art. 833, IV, e § 2º), a pessoa física devedora que reside ou residiu em imóvel locado, pois a satisfação de créditos de tal natureza compõe o orçamento familiar normal de qualquer cidadão e não é justo sejam suportadas tais despesas pelo credor dos aluguéis.
3. Note-se que a preservação da impenhorabilidade na situação acima traria grave abalo para as relações sociais, quanto às locações residenciais, pois os locadores não mais dariam crédito aos comuns locatários, pessoas que vivem de seus sempre limitados salários.
4. Agravo interno parcialmente provido para modificar a decisão agravada e, em novo exame do recurso, conhecer do agravo e dar parcial provimento ao recurso especial.
[…] o novo Código de Processo Civil, em seu art. 833, deu à matéria tratamento um tanto diferente em relação ao Código anterior, no art. 649, substituindo no caput a expressão “absolutamente impenhoráveis” pela palavra “impenhoráveis”, dando, assim, margem à mitigação da regra pelo intérprete, ao considerar o caso concreto.
[…]
Portanto, o que antes era tido como “absolutamente impenhorável”, no novo
regramento passa a ser “impenhorável”, permitindo, assim, essa nova disciplina, maior espaço para o aplicador da norma promover mitigações em relação aos casos que examina.
Assim como o Código de 1973, o atual também traz, por si mesmo, expressamente, relativizações à regra da impenhorabilidade, como se vê, por exemplo, nos §§ 2º de cada artigo transcrito. Então, é para além disso, das próprias relativizações que expressamente já contempla, que o novo Código agora permite, sem descaracterização essencial da regra protetiva, mitigações, pois se estivessem estas restritas às próprias previsões já expressas não seria necessária a mudança comentada.
Atenta à novidade, a Corte Especial deste Tribunal, no julgamento dos EREsp
1.582.475/MG, da relatoria do eminente Ministro Benedito Gonçalves, firmou o entendimento de que a regra geral de impenhorabilidade de vencimentos pode ser excepcionada a fim de garantir a efetividade da tutela jurisdicional, desde que observado percentual capaz de assegurar a dignidade do devedor e de sua família.” (grifamos)
Já se observa a influência dos julgados do STJ relativizando a penhora do salário do devedor nos casos julgados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo[4], a exemplo do julgado abaixo. Vejamos:
“PENHORA DE SALÁRIO/PROVENTOS/REMUNERAÇÃO – Execução de título extrajudicial – Decisão que indeferiu o bloqueio de percentual da renda mensal do agravado – Mitigação da regra do art. 833, IV do CPC, preservando-se da subsistência digna do devedor – Relativização da norma, considerando a remuneração do agravado e as peculiaridades do caso Precedentes jurisprudenciais Excepcionalidade – Autorizada a penhora de 10% da remuneração líquida – Decisão reformada
RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
[…]
Como regra geral, são impenhoráveis as verbas salariais.
A proteção legal que se dá ao salário visa, sobretudo, assegurar o direito fundamental à existência digna.
Todavia, tal garantia não é absoluta e não se presta a acobertar atos abusivos eventualmente praticados pela parte devora, que deliberadamente se esquiva de cumprir suas obrigações.
[…]
Da análise da documentação acostada pela agravante, constata-se que o devedor ocupa o cargo de Diretor de Departamento, com a significativa remuneração líquida de R$ 19.237,33 (mês de referência fevereiro de 2019 fl. 8 deste agravo) e o exequente pleiteia a penhora mensal de 30% desse valor até a satisfação integral do débito.
Algumas diretrizes devem ser consideradas ao analisar o pedido, tais como: a) a remuneração mensal do devedor; b) a proteção à sua subsistência digna; c) a excepcionalidade da medida; d) a tentativa prévia da parte credora de buscar a satisfação do crédito por outros meios menos onerosos ao executado.
Nesse sentido, verifica-se que a credora empregou esforços para buscar seu crédito por meios menos gravosos ao devedor. Em um primeiro momento transigiu com a parte adversa, que descumpriu o acordo. Posteriormente, requereu as pesquisas de praxe via BacenJud (duas vezes), InfoJud e RenaJud, sendo localizados e penhorados apenas R$ 967,32.
A remuneração do agravado é muito superior à média nacional, de modo que não se pode concluir que a penhora de um percentual razoável e proporcional de sua renda tenha o potencial de violar sua dignidade.
Desse modo, considerando os precedentes jurisprudenciais acima colacionados e os elementos constantes nos autos, reforma-se a decisão agravada, autorizando-se, excepcionalmente, a penhora mensal de 10% (dez por cento) da remuneração líquida do agravado assim entendido o total dos vencimentos, subtraídos IAMSPE, previdência oficial e imposto de renda até a satisfação integral do débito.” (grifamos)
A manutenção da regra de impenhorabilidade do salário do devedor se mantém nos casos em que ficar demonstrado que esse recebia “valores módicos”, conforme o voto vencedor da Ministra Isabel Gallotti do Superior Tribunal de Justiça no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.701.828-MG[5].
Inegável, portanto, os reflexos positivos aos credores de forma geral com a possibilidade de penhorar salário do devedor, pois em tempos de elevado inadimplemento, serve a medida de estímulo à mudança na conduta dos devedores contumazes, ou seja, daqueles que usam do brocardo “devo, não nego, e pago quando puder” para não pagarem seus débitos, postura essa que já está sendo coibida pelo Judiciário, a ver do julgado abaixo do Tribunal de Justiça de São Paulo[6]:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – AÇÃO DE COBRANÇA E DENUNCIAÇÃO DA LIDE À SEGURADORA – JULGADA PROCEDENTE – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA PENHORA DO SALÁRIO – ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE, NOS TERMOS DO ART. 833, IV, DO CPC PRECEDENTE RECENTE DO E. STJ QUE PERMITE AO INTÉRPRETE MITIGAR O ALCANCE DA NORMA PREVISTA NO ART. 833, IV, DO CPC, PARA ASSIM AUTORIZAR A PENHORA – DECISÃO REFORMADA – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO
Compatibilizando os princípios constitucionais da proteção ao salário e da efetividade das decisões judiciais, atentando-se ao princípio do razoável, há que se reconhecer que, se os salários se prestam para a satisfação das obrigações assumidas pelo assalariado, na hipótese deste descumpri-las sem justa causa, não demonstrando que a totalidade dos valores percebidos a título de remuneração está comprometida com suas necessidades básicas nada obsta que parte dos proventos dos valores recebidos seja constritado para a quitação da obrigação não paga. Decisão mantida para permitir a penhora dos valores bloqueados, alinhando-se ao recente posicionamento manifestado pelo C. STJ.
[…]
Nos termos do art. 833, IV, do Código de Processo Civil, são os rendimentos de salários impenhoráveis, não havendo qualquer ressalva à sua quantidade vez que se trata de verba destinada ao sustento do trabalhador e de sua família, garantindo-lhes não apenas a sobrevivência mínima, mas também o desfrute de uma vida digna.
Todavia, tal previsão legal se refere à integralidade do valor do salário, e não a parte dele, ressaltando que não se pode dar a essa restrição um caráter absoluto e intangível.
Há que se indagar: qual a destinação do salário? É evidente que tem ele o caráter de satisfazer as necessidades básicas do assalariado assim como honrar as obrigações assumidas, na medida da capacidade de seus ganhos. A máxima dos caloteiros, segundo a qual não nego a minha dívida, mas a pago quando e como puder, não merece ser prestigiada, sob pena de a Justiça acobertar condutas ilícitas, como a aqui demonstrada. Necessário se faz, portanto, que se acomodem os princípios legais constitucionais de proteção do salário e da efetividade da justiça.
[…]
Logo, in casu, sopesando-se as peculiaridades do caso concreto e em homenagem ao princípio da efetividade de tutela jurisdicional, eis que não encontrados outros bens do executado passíveis de penhora, e ainda considerando os conceitos acima externados, entendo bastante razoável o bloqueio do valor correspondente a 10% dos vencimentos líquidos da executada para abatimento da obrigação principal.” (grifamos)
Importante destacar que a penhora do salário do devedor em nada fere a sua dignidade, vez que a relativização da impenhorabilidade dessa verba só é concretizada quando ficar demonstrado ausência de prejuízo à sua subsistência e/ou a de sua família.
Contudo, pondera-se igualmente o direito do credor de satisfazer o seu crédito, pois não parece razoável a máxima proteção do devedor que constitui obrigação além do que efetivamente possa pagar. Mas, como dissemos, na medida em que o Judiciário avança para a equalização dos direitos de uma e outra parte, esse cenário de “irresponsabilidade” está sendo impactado positivamente por essas novas decisões, ficando para trás o descrédito na tutela executiva, rumo à maior efetividade dessas demandas.
[1] STJ, Recurso Especial n.° 1.285.970-SP (2011/0235653-4), Relator Ministro Sidnei Beneti, julgamento 27/05/14, DJe 08/09/14.
[2] In Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil – Edição 2016, Editora Revista dos Tribunais.
[3] STJ, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n.° 1.336.881-DF (2018/0190204-0), Relator Ministro Raul Araújo, julgamento 23/04/19, DJe 27/05/19.
[4] TJSP, Agravo de Instrumento nº 2092796-15.2019.8.26.0000, Relator Des. Spencer Almeida Ferreira, julgamento 19/06/19.
[5] STJ, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.701.828-MG (2017/0256395-9), Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, julgamento 02/10/18, DJe 20/11/18.
[6] TJSP, Agravo de Instrumento n.° 2093051-70.2019.8.26.0000, Relator Desembargador Paulo Ayrosa, julgamento 16/06/2019.
12 novembro, 2024
12 novembro, 2024
07 outubro, 2024
04 outubro, 2024
O boletim Vistos, etc. publica os artigos práticos escritos pelos advogados do Teixeira Fortes em suas áreas de atuação. Se desejar recebê-lo, por favor cadastre-se aqui.