Stay period e garantias fiduciárias na recuperação judicial

16/07/2019

Por Cylmar Pitelli Teixeira Fortes

Por Cylmar Pitelli Teixeira Fortes

Publicado em 15 de julho de 2019 no DCI – Diário Comércio Indústria & Serviços (clique aqui)

Temos chamado a atenção para os perigos que certos malabarismos jurídicos, performados no âmbito dos processos recuperacionais, representam para a concessão do crédito no País.

Segundo disposição expressa da lei que rege as recuperações judiciais, o credor titular de garantia fiduciária não se submete ao regime desse processo (LFR, artigo 49, § 3º), sendo certo que dita proteção contempla bens corpóreos e incorpóreos, entre estes os direitos creditórios objeto de cessão fiduciária (Lei 4.728/65, artigo 66-B). A despeito da clareza da lei, os credores titulares de garantias fiduciárias têm enfrentado verdadeiro calvário na busca de seus direitos.

O embate usualmente travado entre credores e devedores tem submetido aquela proteção legal a tensões permanentes, deixando credores em alerta por todo País. Os ataques, sob as mais variadas (e criativas) teses, têm produzido um certo efeito pendular no Judiciário, ensejando decisões contraditórias, ora prestigiando a lei, ora lhes negando aplicação efetiva, no segundo caso sob o pálio do objetivo final de preservação da empresa.

É verdade que, de maneira geral, a jurisprudência tem reafirmado o entendimento de que a proteção legal conferida aos créditos garantidos por cessões e alienações fiduciárias, nos processos de recuperação judicial, foi uma opção política do legislador, que sopesou a conveniência dessa proteção privilegiada, visando ao mesmo tempo ampliar a oferta de crédito no País e reduzir o spread bancário, mas não são poucas as decisões que colocam em xeque a garantia legal – e a correspondente segurança jurídica que deveria proporcionar – como ocorre nos casos em que tal garantia repousa sobre bens de capital ditos essenciais à atividade empresarial. Diz a lei que tais bens, apesar de excluídos do processo recuperacional, não podem ser retirados do estabelecimento durante o stay period. Na esteira dessa disposição, de natureza excepcional e temporária, tem se operado verdadeira subversão da norma, e aqui destacamos dois aspectos relevantes da prática forense.

O primeiro diz com a circunstância de que, apesar de a lei enfaticamente dispor que a suspensão das ações e execuções contra o devedor, durante o período de stay, “em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias” (artigo 6º, § 4º), é pacífica na jurisprudência a possibilidade de sua prorrogação sucessivas vezes, mesmo que por anos a fio. Recentes decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Superior Tribunal de Justiça enfrentaram o problema da banalização dessas prorrogações, e a elas (serodiamente) colocaram algum cobro, mas a regra geral continua sendo a prorrogação até a conclusão da assembleia geral de credores. Como os bens de capital, se essenciais à atividade da recuperanda, não podem ser retirados do estabelecimento durante o período de stay, o credor fiduciário, cuja garantia seja reputada essencial, é dela privado e instado a aguardar indefinidamente.

Esse tem sido, de fato, o alarmante posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, como em julgamento ocorrido em Maio de 2019, em que se consignou que “os credores cujos créditos não se sujeitam ao plano de recuperação,  mesmo aqueles garantidos por alienação fiduciária, não podem expropriar bens essenciais à  atividade empresarial, sob pena de subvertendo-se o sistema, conferir maior primazia  à  garantia real em detrimento do princípio da preservação da empresa” (AgInt no AREsp 1417663-RS), a exemplo do decidido em outros julgados.

Não sendo raros os casos em que a blindagem dos bens do devedor é estendida para além da própria aprovação do plano, dá-se na prática, com rigor de verdade, o afastamento da garantia sine die, implicando mesmo o perdimento do crédito, não sem graves consequências para o mercado.

O segundo aspecto parece-nos ainda mais ofensivo à opção do legislador, porque subordina a aplicação da lei a um subjetivo juízo de essencialidade, a ser exercido em cada caso concreto. Com efeito, como a lei restringe a excussão e retirada dos bens de capital essenciais à atividade empresarial, os devedores têm sustentado, com algum suporte doutrinário, o alargamento de tal conceito, visando alcançar direitos creditórios transferidos por cessão fiduciária, porque, segundo se afirma, tais créditos seriam igualmente “essenciais” à atividade empresarial.

Ora, não é preciso ir longe na literatura para se afirmar que o conceito de bem de capital em nenhuma hipótese poderia abarcar direitos creditórios: bens de capital são, substancialmente, equipamentos utilizados no processo produtivo, não incorporados diretamente no produto final. Por isso, não tem pertinência descer-se à análise da essencialidade em cada caso concreto, o que produz verdadeira subversão da proteção legal conferida ao credor titular de propriedade fiduciária.

O recente e rumoroso pedido de recuperação judicial do Grupo Odebrecht ensejou decisão liminar proferida na esteira de tal benevolência para com devedores em geral. O juízo de primeiro grau impôs restrições à eficácia das garantias fiduciárias, mas o Tribunal de Justiça as restabeleceu após recursos de cada um dos credores. O caso da Livraria Cultura, poucos meses antes, teve desenvolvimento e desfecho semelhantes.

Finalmente, é importante registrar que ao contrário de uma suposta tendência sustentada por alguns, o Projeto de Lei 10.220/18, que visa introduzir alterações no diploma recuperacional em vigor, manteve a proteção do credor com garantia fiduciária dos efeitos da recuperação judicial. De toda sorte, de nada adiantará essa e outras previsões legais se o Poder Judiciário não lhes garantir a aplicação, inobstante o amargo que isso possa causar aqui e acolá. Decisões que violam a lei emitem sinais ambíguos ao mercado; estão, em verdade, sacrificando todo um universo empreendedor difuso, que necessita de crédito para crescer, em favor de alguns poucos negócios malsucedidos, que talvez devessem mesmo ser extintos, exatamente como preconiza nossa lei de quebras. A democracia pressupõe respeito à lei, e não se justifica sua violação constante a pretexto de cumprimento de preceitos abstratos como o da preservação da empresa.

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