Por Marsella Medeiros Araujo Bernardes
Em 30 de abril de 2019, foi editada a Medida Provisória nº 881, por meio da qual estabeleceram-se diretrizes para garantia do livre mercado e prestigiou-se o princípio da liberdade econômica.
Dentre as alterações e inovações trazidas na MP da Liberdade Econômica, destacam-se as do artigo 50 do Código Civil, que trata da desconsideração da personalidade jurídica.
A redação original[1] do texto de 2002 trazia conceitos genéricos que acabavam por dar margem à interpretação extensiva e à subjetividade, que oscilavam de acordo com o entendimento particular de cada julgador.
Na prática, cabia a cada juiz, ao analisar o caso concreto, identificar a ocorrência do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial – até então, conceitos abstratos sem definição legal expressa – para decidir pela desconsideração ou não da personalidade jurídica, o que, em meio às diferentes possibilidades interpretativas, gerava certa insegurança jurídica.
Ao definir os conceitos e ampliar as previsões do artigo 50 do Código Civil, a MP nº 881, ao que parece, traz maior segurança aos jurisdicionados. Veja-se a redação atual do dispositivo:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
§ 3º O disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica”.
Além de conceituar expressamente os termos “desvio de finalidade” (§1º) e “confusão patrimonial” (§2º) – o que, por si só, foi recebido com otimismo – principalmente pela área de recuperação de crédito, conforme explicado pela Dra. Maria Cláudia Ribeiro Xavier no artigo publicado em 08/05/2019 – a MP previu que:
(i) o desvio de finalidade e a confusão patrimonial serão aplicáveis extensivamente às obrigações dos sócios ou de administradores da pessoa jurídica (§3º);
(ii) a existência de grupo econômico somente ensejará a desconsideração da personalidade jurídica caso estejam presentes os requisitos do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial (§4º); e
(iii) a alteração ou expansão da finalidade original da atividade da pessoa jurídica não constitui desvio de finalidade (§5º).
Pois bem. O §3º consagrou a possibilidade de atingimento do patrimônio da pessoa jurídica quando a pessoa física que compõe o seu quadro societário esvazia, dolosa e fraudulentamente, o seu patrimônio pessoal para frustrar o adimplemento de dívidas em seu nome.
Em verdade, o Código de Processo Civil de 2015 já havia previsto que os dispositivos que tratam da instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica seriam igualmente aplicáveis à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica, nos termos do §2º do art. 133[2].
Contudo, não havia nenhuma previsão legal que conceituasse ou esclarecesse, expressamente, o que seria a tal “desconsideração inversa da personalidade jurídica”. Ficava à cargo da jurisprudência e da doutrina definirem o conceito e a extensão desse instituto. Com a MP nº 881, a definição passou a existir no ordenamento jurídico.
O §4º, por sua vez, apesar de não trazer grandes novidades – uma vez que a personalidade jurídica, de qualquer forma, não é desconsiderada se ausentes os requisitos da confusão patrimonial ou do desvio de finalidade, seja em situação que envolva pessoa física e jurídica, seja envolvendo empresas de um mesmo grupo econômico –, acabou por definir a desconsideração indireta da personalidade jurídica:
“Se, por um lado, a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos legais não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, por outro, nada impede que, uma vez observados tais pressupostos, o juiz decida, dentro de um mesmo grupo econômico, pelo afastamento de um ente controlado, para alcançar o patrimônio da pessoa jurídica controladora que, por meio da primeira, cometeu um ato abusivo” [3].
A despeito de todas as inovações trazidas pela nova redação do art. 50 do CC, contudo, é preciso ficar atento: na prática, o §5º pode ser um dificultador para o reconhecimento do requisito de desvio de finalidade.
Isso porque, ao dispor que a “a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica” não constitui desvio de finalidade, o reconhecimento desse requisito poderá ser prejudicado: caso a fundamentação utilizada no requerimento da desconsideração seja baseada estritamente na alteração ou na expansão da atividade econômica da sociedade devedora, o credor poderá enfrentar problemas para obter o deferimento do pedido.
Nesse caso, caberá à jurisprudência estabelecer parâmetros razoáveis para balizar a medida em que essa exceção à regra representará ou não uma tentativa do devedor de fraudar seus credores.
Paralelamente a todo esse debate sobre as inovações legais, é preciso acompanhar a tramitação da Medida Provisória e a sua possível conversão em lei.
O parecer da comissão mista, formada por deputados federais e senadores, foi aprovado em 11/07/2019. Agora, o texto segue para o Plenário da Câmara dos Deputados e, em seguida, para o Plenário do Senado Federal. O prazo final para conversão da Medida Provisória em Lei vai até setembro deste ano.
[1] “Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
[2] “Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
(…) §2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
[3] TARTUCE, Flávio. A Medida Provisória da “Liberdade Econômica” e a Desconsideração da Personalidade Jurídica (Art. 50, CC): Primeiras Impressões
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