Por Orlando Quintino Martins Neto
Segundo o artigo 1.514 do Código Civil, “o casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados.”
A Constituição Federal, em seu artigo 226, § 3º, diz que “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. O Código Civil, no artigo 1.723, de maneira expressa, também dispõe sobre o reconhecimento da união estável quando “configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
Sobre o que dispõe o Código Civil no que toca à união estável, o que podemos entender por “convivência pública, contínua e duradoura”?
O Superior Tribunal de Justiça, em nota divulgada em data recente (08/08/2019), noticiou que a 4ª Turma da referida Corte decidiu que um namoro de 2 meses, com coabitação de apenas 2 semanas, não é suficiente para caracterização de uma união estável.
Ainda segundo a notícia divulgada pelo STJ, o relator do recurso, ministro Luis Felipe Salomão, explicou que a doutrina e a jurisprudência vêm reconhecendo que alguns requisitos são essenciais para a configuração de uma união estável: estabilidade; publicidade (modus vivendi); continuidade e objetivo de constituição de família.
Lembrou ainda o ministro um precedente da 3ª Turma do STJ, que diz: "Somado a estes (requisitos), há também os acidentais, como o tempo de convivência, a existência de filhos, a construção patrimonial em comum, a lealdade e a coabitação, que, apesar de serem prescindíveis (como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, Súmula 382), possibilitam que o julgador tenha mais substrato para a recognição do formato de tal entidade".
Ou seja, a despeito da subjetividade da lei, verifica-se pelas recentes decisões que o reconhecimento de uma união estável depende de alguns requisitos mínimos, e, dentre eles, está o tempo de convivência. O número do processo objeto da notícia acima não foi divulgado pelo STJ, em razão de segredo judicial, mas a notícia pode ser verificada na íntegra clicando aqui.
Feitas as considerações acima, pergunta-se: do ponto de vista patrimonial, há diferença entre o casamento e a união estável?
No que se refere à comunicação dos bens entre as partes em vida, a regra é a mesma. Deve ser observado o regime de bens escolhido entre os cônjuges ou companheiros, lembrando que, na ausência de pacto escrito, será considerado, para os fins legais, o regime da comunhão parcial de bens, com a comunicação daqueles adquiridos onerosamente na constância da união estável ou do casamento.
Já em caso de falecimento de um dos cônjuges ou companheiros, para fins de herança, o Código Civil faz uma distinção clara entre o casamento e a união estável:
a) no casamento (artigo 1.829), o cônjuge sobrevivente participa da sucessão do falecido, em concorrência com os filhos, sendo eles comuns ou não, cabendo-lhe, no mínimo, dependendo do regime do casamento , quinhão igual ao dos descendentes;
b) já na união estável (artigo 1.790), o companheiro sobrevivente participa da sucessão, cabendo-lhe quinhão igual ao dos filhos comuns (se houver), mas, se concorrer com filhos apenas do falecido, terá direito à metade do que couber a cada um deles.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário 878.694/MG e o Recurso Extraordinário 646721/RS, em 10/05/2017, decidiu pela inconstitucionalidade na distinção entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do artigo 1.829 do Código Civil:
“Acordam, vencido o Ministro Marco Aurélio, em fixar tese nos seguintes termos: ‘É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002’”.
Desta forma, a despeito da distinção feita pela lei, parece-nos que não há mais diferença entre cônjuges e companheiros no âmbito patrimonial.
Mas e se a união for homoafetiva?
Como já afirmado alhures, tanto ao se referir ao casamento, quanto à união estável, a lei sempre faz menção à união entre “o homem e a mulher” .
Há algum tempo, com base na interpretação literal da lei, os requerimentos judiciais para reconhecimento de uniões homoafetivas eram negados de plano.
Em 2008, foi proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, perante o Supremo Tribunal Federal, uma medida chamada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 132/RJ, para reconhecimento do descumprimento de preceitos fundamentais da Constituição, notadamente os princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), da igualdade (artigo 5º, caput), da liberdade (artigo 5º, caput) e da proteção à segurança jurídica, quando da interpretação do artigo 1.723 do Código Civil nas ações de reconhecimento de união estável homoafetiva. Em 2009, foi proposta uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ADI 4277/DF, pela Procuradora-Geral da República, com parcial identidade dos objetos, ocasionando a conversão da ADPF em ADI.
No Acórdão da mencionada ADI, proferido em 05 de maio de 2011, restou reconhecida a inconstitucionalidade na distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo, reconhecendo o STF, assim, a união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
A Decisão do Supremo Tribunal Federal tem eficácia erga omnes e efeito vinculante, valendo, portanto, as mesmas regras e consequências da união estável entre homens e mulheres, conforme trecho da Decisão:
“Os ministros desta Casa de Justiça, ainda por votação unânime, acordam em julgar procedentes as ações, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, com as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva, autorizados os Ministros a decidirem monocraticamente sobre a mesma questão, independentemente da publicação do acórdão.”
Após a publicação desse Acórdão pelo Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do REsp 1.183.378/RS, em 25/10/2011, decidiu pela inexistência de óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo, bem como a conversão da união estável em casamento:
“De outro lado, o casamento, desde os tempos remotos, constitui-se no instrumento jurídico principal a conferir segurança às relações familiares, pois ele estabelece oficialmente, ante ao ordenamento e à sociedade, os vínculos e deveres conjugais, regime patrimonial, dentre outra elevada gama de obrigações e direitos, garantindo, assim, a plena vida em comum do casal.
Ora, se a união homoafetiva é reconhecidamente uma família, se o fundamento da existência das normas de direito de família consiste precisamente em gerar proteção jurídica ao núcleo familiar, e se o casamento é o principal instrumento para essa proteção, seria totalmente despropositado concluir que esse elevado instrumento jurídico do casamento não pode alcançar os casais homoafetivos. […]
Por todas essas razões, considerando que o Supremo Tribunal Federal já examinou matéria atinente à proteção familiar com foco incidente na mesma discussão agora em debate (união homoafetiva), e, entendendo que a solução aqui assinalada não tem, por si, o condão de afastar as vezes do legislador, no caso posto, por interpretação extensiva e à vista da inexistência de vedação normativa à tutela estatal daqueles que pretendem constituir uma entidade familiar por homoafetividade, é de se reconhecer a proteção familiar, típica do regime do casamento, aos casais constituídos por pessoas do mesmo sexo.”
Se a união homoafetiva é reconhecidamente uma entidade familiar, e se o fundamento da existência das normas de direito de família consiste precisamente em gerar proteção jurídica ao núcleo familiar, sendo o casamento o principal instrumento para essa proteção, seria totalmente despropositado concluir que esse elevado instrumento jurídico do casamento não poderia alcançar os casais homoafetivos.
A despeito das decisões judiciais mencionadas, algumas autoridades cartorárias ainda se recusavam a habilitar nubentes do mesmo sexo para o casamento. Somente com a publicação da Resolução nº 175/2013 pelo Conselho Nacional de Justiça, que proibiu a recusa das autoridades cartorárias na habilitação e celebração de casamento civil ou conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, houve o encerramento da insegurança jurídica, conforme disposição expressa dos seus artigos:
"Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Art. 2º A recusa prevista no artigo 1º implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis.
Art. 3º Esta resolução entra em vigos na data de sua publicação."
Assim, se o casamento homoafetivo é reconhecido e permitido pelo ordenamento jurídico, parece-nos óbvio que se aplicam os mesmos dispositivos da união estável ao casamento homoafetivo para fins de sucessão. As decisões têm sido procedentes para os companheiros sobreviventes que pleiteiam sua habilitação como herdeiros. Nesse sentido:
“DIREITO DE FAMÍLIA, SUCESSÕES E PROCESSUAL CIVIL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. SUCESSÃO REGIDA PELAS LEIS N. 8.971/1994 E N.9.278/1996. AUSÊNCIA DE ASCENDENTES E DESCENDENTES DO DE CUJUS.PEDIDO INICIAL QUE SE LIMITA A DIREITO REAL DE HABITAÇÃO SOBRE O IMÓVEL RESIDENCIAL. SENTENÇA QUE O ACOLHE NOS MESMOS TERMOS. RECURSO DE APELAÇÃO. INEXISTÊNCIA. PROPRIEDADE PLENA. PEDIDO REALIZADO EM GRAU DE RECURSO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE. 1. No Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, são reiterados os julgados dando conta da viabilidade jurídica de uniões estáveis formadas por companheiros do mesmo sexo. No âmbito desta Casa, reconheceu-se, inclusive, a juridicidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo (REsp 1.1833.78/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011), tendo sido essa orientação incorporada pelo Conselho Nacional de Justiça na Resolução n. 175/2013. 2. Por outro lado, o silêncio da Lei n. 9.278/1996 não excluiu o direito do companheiro à totalidade da herança, na hipótese de inexistência de ascendentes e descendentes do de cujus, na verdade, afastando a participação de parentes colaterais, tal como previsto no art. 2º, inciso III, da Lei n. 8.971/1994. Precedentes. 3. Todavia, tendo a inicial se limitado a pedir apenas o direito real de habitação e a sentença a concedê-lo, inexistente também recurso de apelação, descabe pleitear, em recurso especial, a propriedade plena do imóvel no qual residia a recorrente com sua falecida companheira. 4. O direito de herança, embora seja decorrência ope legis do reconhecimento da união estável, consiste em direito patrimonial disponível, podendo o titular dele inclusive renunciar por expressa previsão legal (arts. 1.804 a 1.813 do Código Civil), razão por que o juiz deve limitar-se ao que efetivamente é pleiteado pela parte, sob pena de, aí sim, incorrer em julgamento extra ou ultra petita. 5. Recurso especial não provido.”[1]
Diante de todo o acima exposto, nos dias atuais, podemos afirmar que não há mais distinção entre cônjuge e companheiro, quer no que se refere à comunicação de bens entre vivos, quer no que se refere os direitos de sucessão, seja a união entre homem e mulher ou entre pessoas do mesmo sexo.
[1] REsp 1204425 / MG. Data do Julgamento: 11/02/2014.
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