Obrigação solidária independe de autorização do cônjuge

12/03/2020

Por Maria Claudia Ribeiro Xavier

Na prática comercial, é comum a celebração de contratos com garantias como o aval e a fiança, ou ajustes com a instituição de devedores solidários, como nos instrumentos de confissão de dívida.

De acordo com o artigo 1.647, inciso III, do Código Civil[1], para que um devedor casado em regime de comunhão de bens (parcial ou universal) garanta uma obrigação como avalista ou fiador, ele precisa da outorga (autorização) de seu cônjuge – uxória (esposa) ou marital (marido).

Isso decorre das implicações no patrimônio comum do casal, no caso de inadimplemento da obrigação garantida pelo devedor principal, observado, claro, a meação do cônjuge que não prestou o aval ou a fiança.

O artigo 1.647, inciso III, do Código Civil, é expresso quanto à necessidade de outorga conjugal para os casos de aval ou fiança, mas, apesar disso, alguns devedores tentam “emplacar” a tese de nulidade na obrigação solidária constituída sem essa autorização, o que é um equívoco, como vamos demonstrar.

Obrigação solidária

Nos termos do artigo 264 do Código Civil “Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda”.

Importante enfatizar que, por disposição do artigo 265 da mesma Lei[2], a solidariedade não pode ser presumida, ela deve resultar da lei ou da vontade das partes. Essa última hipótese é a que ocorre nos instrumentos de confissão de dívida, em que o codevedor concorda em responder solidariamente pelo pagamento de uma dívida com o devedor principal.

Na obrigação solidária, o codevedor não é mero garantidor do pagamento de uma dívida. Ele responde por ela integralmente, sendo facultado ao credor exigir a obrigação de algum ou de todos os devedores, conforme lhe aprouver (artigo 275 do Código Civil)[3].

Aval e Fiança

Sobre o aval, leciona o Professor Fábio Ulhoa Coelho que “O aval representa garantia dada em favor de devedor de letra de câmbio. Ele é autônomo e equivalente à obrigação do avalizado”.[4]

Quanto à fiança, a doutrina da Professora Maria Helena Diniz nos diz que “a fiança ou caução fidejussória, vem a ser a promessa, feita por uma ou mais pessoas, de garantir ou satisfazer a obrigação de um devedor, se este não a cumprir, assegurando ao credor o seu efetivo cumprimento (CC, art. 818)”.[5]

Como podemos observar, o aval e a fiança tratam de garantias, cuja constituição e execução são distintas da obrigação solidária em que o codevedor, frise-se, não é um mero garantidor, mas o responsável solidário pelo pagamento de um débito.

Dispensa de outorga conjugal na obrigação solidária

Como visto, a obrigação solidária não se trata de garantia, mas de livre manifestação de vontade do codevedor, de se obrigar ao pagamento de uma determinada dívida solidariamente.

No que tange ao inciso III do artigo 1.647 do Código Civil, vemos da redação dessa norma que ela não se aplica à obrigação solidária, ou seja, o codevedor não precisa de autorização do cônjuge para assumir o compromisso de pagar uma dívida em solidariedade.

O Colendo Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a desnecessidade de outorga conjugal nas obrigações solidárias[6]:

“[…] importa destacar que esta Corte Superior adotou orientação no sentido de que estabelecido no acórdão estadual que o cônjuge da recorrente obrigou-se como devedor solidário, e não como fiador, torna-se impertinente a fundamentação adotada pela parte no sentido de se exigir a outorga uxória para se alcançar a eficácia plena da garantia.

A mesma orientação é seguida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo:

“não vinga a alegação de nulidade do aval por ausência de outorga uxória.
[…]
A hipótese dos autos, portanto, não se confunde com aquela prevista no art. 1.647, III, do Código Civil. Assim, para que referido apelante assumisse a obrigação na qualidade de devedor solidário, e não como avalista ou fiador, o consentimento do cônjuge não era indispensável para a validade do ato.”[7]

Relativização da outorga conjugal no aval

Importante informar, ainda, que mesmo quanto às obrigações com aval do codevedor, que o Superior Tribunal de Justiça relativizou a necessidade de outorga do cônjuge.
A esse respeito, destacamos interessante acórdão do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino[8], por meio do qual ele reviu seu posicionamento e passou a seguir a orientação da Quarta Turma (REsp 1.633.399/SP), para dispensa dessa autorização:

A polêmica central devolvida ao conhecimento deste Colegiado situa-se em torno da interpretação do enunciado normativo do art. 1.647, inciso III, do CCB, a estabelecer a vênia conjugal como requisito de validade do aval, isso quando o avalista for casado em regimes outros que não o da separação.
[…]
Recentemente, no entanto, a Colenda Quarta Turma, no REsp 1.633.399/SP, sob a relatoria do e. Min. Luis Felipe Salomão, propôs interpretação diferenciada desses enunciados normativos em relação àquela que vinha grassando no seio daquela Turma, tendo participado do julgamento todos os seus ilustres integrantes, à exceção do e. Min. Raul Araújo, justificadamente ausente.
[…]
Estou em aceder à douta conclusão do colegiado da Quarta Turma.
[…]
A outorga uxória ou marital compraz com o contrato de fiança, mas não com a declaração unilateral consubstanciada no aval, pois o portador do título contato algum, em regra, terá com o avalista e, menos ainda, com algum documento de identificação deste em que se evidencie o seu estado civil.
[…]
Assim, a interpretação do art. 1647, inciso III, do CCB que mais se concilia com o instituto cambiário do aval e, pois, às peculiaridades dos títulos de crédito é aquela em que as disposições contidas no referido dispositivo hão de se aplicar aos avais prestados nos títulos de crédito regidos pelo próprio Código Civil (atípicos), não se aplicando aos títulos de crédito nominados (típicos) regrados pelas leis especiais, que, atentas às características do direito cambiário, não prevêem semelhante disposição, pelo contrário, estabelecem a sua independência e autonomia em relação aos negócios subjacentes.”

Hoje, as duas Turmas de Direito Privado do Superior Tribunal de Justiça se orientam pela dispensa da outorga conjugal nos títulos de crédito regulados por leis próprias, por exemplo, a nota promissória.

A tese seguida pela Corte é a de que o artigo 1647, inciso III, se aplica apenas aos avais prestados nos títulos de créditos previstos no Código Civil.

Conclusão

Como demonstramos, a obrigação solidária não é mera garantia, mas livre manifestação de vontade do codevedor de pagar solidariamente uma dívida.

Nos termos do inciso III do artigo 1.647 do Código Civil, bem como dos julgados mencionados do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça de São Paulo, a obrigação solidária NÃO precisa de outorga conjugal para validade do ato.

Importante registrar que, de acordo com a jurisprudência do STJ, o inciso III do artigo 1.647 só se aplica aos títulos de crédito regulados pelo Código Civil, não se aplicando aos títulos regidos por leis próprias, como a nota promissória.

Portanto, podemos afirmar ser equivocada a tese sustentada por alguns devedores, de nulidade da obrigação solidária constituída sem outorga do cônjuge.


[1] Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:
[…]
III – prestar fiança ou aval;

[2] Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.

[3] Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto.

[4] In Curso de Direito Comercial, volume 1: direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2010.

[5] In Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 3: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. São Paulo: Saraiva, 2010.

[6] STJ, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n.º 931.556-SP (2016/0126233-3), Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgamento 22/11/2016.

[7] TJSP, Apelação Cível nº 1009837-24.2018.8.26.0037, Rel. Des. Souza Lopes, julgamento 28/11/2019.

[8] STJ, Recurso Especial n.º 1.526.560-MG (2015/0079837-4), Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgamento 16/03/2017.

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