Segurança jurídica dos negócios imobiliários após a Lei 13.097/2015

13/03/2020

Por Mayara Mendes de Carvalho

A Lei Federal nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015, originou-se da Medida Provisória nº 656, de 7 de outubro de 2014. Referida lei, que trata de diversos outros temas, trouxe entre seus 169 artigos um dispositivo voltado a impor no País a adoção do princípio da concentração dos dados imobiliários nas respectivas matrículas dos imóveis.[1]

A preocupação do legislador, ao adotar esse princípio, deveu-se à usual assimetria de informações que cerca as operações imobiliárias: de um lado, o proprietário, detentor de informações jurídicas e financeiras acerca do bem e de si próprio; de outro, o adquirente de boa-fé, a quem compete buscar ditas informações – que em última análise visam tão somente assegurar a higidez da operação – nas mais diversas e dispersas fontes.

Pretendeu-se, com o novo texto legal, que adquirentes, credores com garantia real e financiadores em geral, pudessem se proteger de eventuais riscos relacionados à transação mediante simples consulta à certidão de matrícula, expedida pelo registro imobiliário competente:

“Art. 54, Lei nº 13.097/2015.  Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:       
I – registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;
II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil;
III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e
IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.
Parágrafo único.  Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel”. (grifo nosso)

A Lei nº 13.097 veio consolidar entendimento já formalmente sedimentado no Superior Tribunal de Justiça, em dois precedentes: (i) o primeiro, meramente persuasório, constante do Enunciado nº 375, de 18 de março de 2009;[2] e (ii) o segundo, de caráter vinculante às instâncias inferiores, constante do Tema nº 243, de 20 de agosto de 2014, julgado de acordo com a sistemática dos Recursos Repetitivos,[3] ao determinar que os negócios imobiliários são eficazes em aos atos não levados a registro ou averbação, conforme o caso, na matrícula do imóvel.

Com isso, os interessados em comprar imóveis ou recebê-los em garantia ficaram expressamente dispensados da obtenção das certidões de distribuidores judiciais, para fins de caracterizar sua boa-fé nos negócios imobiliários.

Tais certidões, aliás, foram retiradas do rol de documentos cuja solicitação é obrigatória pelos tabelionatos de notas para a lavratura de escrituras públicas:

“Art. 1º, Lei nº 7.433/1985. “Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos documentos de identificação das partes, somente serão apresentados os documentos expressamente determinados nesta Lei.
[…]
§ 2º – O Tabelião consignará no ato notarial, a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais, feitos ajuizados, e ônus reais, ficando dispensada sua transcrição.
§ 2º – O Tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição. (Redação dada pela Lei nº 13.097, de 2015) (Vigência)
§ 3º – Obriga-se o Tabelião a manter, em Cartório, os documentos e certidões de que trata o parágrafo anterior, no original ou em cópias autenticadas”.

Com o panorama normativo alterado, esperava-se claro e automático aumento da segurança jurídica dos negócios imobiliários; a desburocratização dos procedimentos, inclusive nos casos de concessão de crédito; redução de custos; aumento da celeridade, tudo em decorrência do fato de que bastaria ao interessado a checagem de um único documento fidedigno – a matrícula do imóvel – para que tivesse acesso a todas as informações pertinentes ao imóvel.

A novidade era de fato alvissareira, pois dispensava aquele que negociava o imóvel de buscar e examinar um sem número de certidões; mais que isso, afastava os riscos potenciais de atos de constrição oriundos de ações judiciais porventura em trâmite em comarcas distintas da situação do imóvel e do domicílio das partes.

Sucede que em março de 2015 entrou em vigor o novo Código de Processo Civil (CPC/15), com eficácia a partir de Março de 2016. Longamente debatido no meio jurídico, esse novo diploma reacendeu algumas interpretações que trouxeram nova insegurança a respeito da essencialidade ou não do registro/averbação de ônus, penhoras, execuções e outas restrições, na matrícula do imóvel, para gerar direito oponível ao terceiro que o adquiriu ou o recebeu em garantia.

O artigo 792, incisos I, II e III, do CPC/15, harmoniza-se perfeitamente com a sistemática consolidada pela Lei nº 13.097, referindo-se expressamente à necessidade de averbação para a caracterização da fraude:

“Art. 792, CPC/2015. “A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
I – quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;
II – quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;
III – quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;”

Mas o inciso IV, repetindo a redação do CPC/73 (antigo art. 593, inciso II), preconizou a ocorrência de fraude à execução simplesmente “quando ao tempo da alienação ou oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo a insolvência“.

Essa disposição, em alguns casos interpretada isoladamente do contexto normativo em comento, trouxe insegurança jurídica a respeito da dispensa de outras certidões no momento da negociação imobiliária.

O CPC/2015 é posterior à Lei nº 13.097, ao enunciado nº 375 da Súmula do STJ e ao julgamento, em sede de Recurso Repetitivo (isto é, com força vinculante para as instâncias inferiores), do Tema nº 243 pelo STJ. Fortes nesse raciocínio, surgiram decisões desconsiderando o teor da Lei nº 13.097 e dos citados precedentes do STJ, estabelecendo que mera existência de ação em curso contra o devedor, capaz de reduzi-lo à insolvência – na forma do CPC – permanecia sendo suficiente para o reconhecimento da fraude à execução. Nesse sentido, apontamos: TJSP, Agravo de Instrumento nº 2020018-52.2016.8.26.0000, Des. Rel. Sergio Shimura, 23ª Câmara de Direito Privado, J. 11 de maio de 2016; TJSP, Apelação nº 1000901-73.2014.8.26.0223, Des. Rel. Maria Lúcia Pizzotti, 30ª Câmara de Direito Privado, J. 31 de agosto de 2016; TJSP, Agravo de Instrumento nº 2102787-20.2016.8.26.0000, Des. Rel. Vito Gugliemi, 6ª Câmara de Direito Privado, J. 27 de outubro de 2016; TJSP, Agravo de Instrumento nº 2161835-07.2016.8.26.0000, Des. Rel. Ruy Coppola, 32ª Câmara de Direito Privado, J. 17 de novembro de 2016.

É certo que os julgados mencionados acima não refletem o posicionamento mais recente de nossas cortes, em especial do Tribunal de Justiça de São Paulo e do STJ, os quais proferiram diversas decisões em sentido contrário, harmonizando o texto do CPC/2015 com o do Enunciado nº 375 do STJ e, especialmente, com o da Lei nº 13.097.[4] Nesse sentido:

“EMENTA Embargos de terceiro. Aquisição de imóvel quando já em curso execução contra o vendedor. Falta de obtenção de certidões do distribuidor forense. Irrelevância, já que a Lei 13.097/2015 tornou dispensável tal medida ao prever a averbação acerca da presença de ação no registro imobiliário e anunciar que não podem ser opostas ao terceiro de boa-fé situações jurídicas não indicadas no registro. Presunção de boa-fé dos adquirentes em nada contrariada. Súmula STJ nº 375 do STJ. Embargos acolhidos. Recurso provido”. (grifo nosso)
(TJSP. Apelação nº 1016801-15.2018.8.26.0625. Des. Rel. Arantes Theodoro. 36ª Câmara de Direito Privado. J. 16 de janeiro de 2020)
“AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. FRAUDE À EXECUÇÃO. SÚMULA 375/STJ. INEXISTÊNCIA DE REGISTRO IMOBILIÁRIO DA PENHORA OU DA EXISTÊNCIA DA AÇÃO. MÁ-FÉ DO TERCEIRO ADQUIRENTE NÃO COMPROVADA. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO.
1. De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, cristalizada na Súmula 375, ‘O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente’. E mais, nos termos da tese firmada pela Corte Especial do STJ, em sede de julgamento de recurso especial repetitivo, ‘inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência’ (REsp 956.943/PR, Rel. p/ acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/08/2014, DJe de 1º/12/2014).
2. No caso dos autos, inexiste registro da penhora ou da existência da ação na matrícula do imóvel alienado, bem como não ficou comprovado que os agravados, terceiros adquirentes, tinham conhecimento da execução movida em desfavor do alienante, sendo, portanto, inviável o reconhecimento da fraude à execução.
3. Agravo interno a que se nega provimento”.
(STJ. AgInt no Recurso Especial nº 1.738.170-SP. Min. Rel. Raul Araújo. Quarta Turma. J. 17 de dezembro de 2019)

Assim, parece-nos acertada a posição de alguns juristas, para quem o referido inciso IV do artigo 792 do CPC/15 não pode ser interpretado isoladamente – mas sistematicamente, em harmonia com os incisos anteriores, com o § 2º do mesmo artigo[5] e com  artigo 54 da Lei nº 13.097 – de tal sorte que só seria aplicável aos bens não sujeitos a registros públicos. Faz, de fato, todo sentido.

Malgrado os precedentes tendentes à formação de uma jurisprudência mais sólida, os entendimentos judiciais recalcitrantes, especialmente alguns provenientes da justiça especializada do trabalho, não nos permite falar em eficácia plena do art. 54 da Lei nº 13.097/2015.

Vale dizer: parece-nos prematuro afirmar que toda e qualquer operação imobiliária, sobretudo aquelas celebradas em ambiente corporativo, possa respaldar-se apenas e tão somente nas informações constantes das certidões de matrícula.

Anote-se por fim que o registro imobiliário não contempla a publicidade de todos os demais riscos relacionados a uma dada operação imobiliária e às pessoas envolvidas, como as obrigações de caráter propter rem, isto é, aquelas que seguem a propriedade – v.g. as contribuições condominiais, aquelas vinculadas a loteamentos fechados e ao IPTU – bem como os ônus de caráter socioambiental, urbanísticos, construtivos, cadastrais e de licenciamento, entre outros, cuja análise, independentemente de matrícula, permanece absolutamente recomendável em nome da segurança jurídica e patrimonial e quem adquire, financia ou recebe em garantia um imóvel.


[1] Exposição de motivos nº 00144/2014 MF MJ MTE MDIC BACEN.

[2] Súmula 375: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

[3] Tese firmada: “Para fins do art. 543-c do CPC, firma-se a seguinte orientação: […] 1.2. O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente (Súmula n. 375/STJ); 1.3. A presunção de boa-fé é princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar parêmia: a boa fé se presume; a má-fé se prova; 1.4. Inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência, sob pena de torna-se letra morta o disposto no art. 659, § 4º, do CPC”.

[4] TJSP, Apelação nº 1019728-46.2018.8.26.0562, Des. Rel. Décio Rodrigues, 21ª Câmara de Direito Privado, J. 18 de junho de 2019. TJSP, Agravo de Instrumento nº 2104958-42.2019.8.26.0000, Des. Rel. Marino Neto, 11ª Câmara de Direito Privado, J. 12 de agosto de 2019. TJSP, Apelação nº 1016801-15.2018.8.26.0625, Des. Rel. Arantes Theodoro, 36ª Câmara de Direito Privado, J. 16 de janeiro de 2020 (ementa acima mencionada). TJSP, Apelação nº 1004346-57.2018.8.26.0224, Des. Rel. Salles Vieira, 24ª Câmara de Direito Privado, J. 30 de janeiro de 2020. STJ, AgInt no Recurso Especial nº 1.504.307-PE, Min. Rel. Sérgio Kukina, Primeira Turma, J. 27 de novembro de 2018. STJ, AgInt no Recurso Especial nº 1.738.170-SP, Min. Rel. Raul Araújo, Quarta Turma, J. 17 de dezembro de 2019.

[5] § 2º. “No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem”.

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