Passivo fiscal de empresas e coronavírus

14/04/2020

Por Vinícius de Barros

Publicado em 14 de abril de 2020 no Valor Econômico

Os efeitos da crise provocada pelas medidas de prevenção contra o coronavírus estão sendo devastadores para a economia. Os dados divulgados até agora, há pouco menos de um mês do decreto de quarentena, são bastante preocupantes.

Para se ter uma ideia do tamanho do problema, a Confederação Nacional das Indústrias divulgou em seu site uma pesquisa feita entre as indústrias brasileiras que concluiu que nada menos do que 92% delas estão sofrendo impactos negativos, e que 41% interromperam a produção. Outro levantamento, divulgado no site do Sebrae, revelou que 89% das micro e pequenas empresas brasileiras tiveram queda no seu faturamento e que 36% precisarão fechar seus negócios permanentemente, caso a quarentena permaneça por mais tempo.

Sem poder produzir para gerar receita, não é exagerado imaginar que, a curto ou médio prazo, muitas empresas não conseguirão sobreviver à crise e fatalmente encerrarão suas atividades, sem poder fazer frente ao cumprimento de suas obrigações tributárias.

Em situações ordinárias, em que empresas fecham por mero insucesso comercial, conflitos societários e outras circunstâncias consideradas normais, a regra é que o sócio responde pessoalmente pelas obrigações fiscais deixadas por sua empresa.

O entendimento dos Tribunais é que o sócio responde na hipótese de encerramento irregular, conforme Súmula 435 do Superior Tribunal de Justiça, o que, a nosso ver, é o caso da empresa que fecha as portas sem dar baixa em seu registro na Junta Comercial, e sem comunicar o fato aos órgãos públicos. Mas o que acontece na prática é que o fato de a empresa encerrar suas atividades e não quitar seus passivos tributários é suficiente para o fisco cobrar o sócio, independentemente de ter havido a formalização do encerramento da sociedade.

Assim, se analisarmos a questão pela regra aplicável a situações ordinárias, o sócio da empresa que fechar definitivamente suas portas, por efeito da pandemia do coronavírus, está sujeito a arcar, com seus bens pessoais, com as dívidas fiscais da sociedade. Isso aumenta o desespero e a angústia dos empresários, que já sofrem com a repentina perda de suas fontes de renda.

Entretanto, a nosso ver a situação das empresas que forem vitimadas pela pandemia do coronavírus não pode ser analisada sob as mesmas regras que são aplicadas a situações ordinárias. Estamos diante de um evento absolutamente extraordinário, sem precedentes na história recente do país, que merece ser visto sob um ponto de vista diferente.

Em meio ao cenário atual de calamidade, os sócios de empresas que comprovadamente não cumprirem suas obrigações fiscais em razão da crise do coronavírus – é muito importante frisar que deve haver relação entre a causa e o efeito – não devem responder pelas dívidas tributárias, nem mesmo na hipótese de encerramento irregular de que trata a Súmula 435 do STJ.

A autorização para que o fisco cobre o sócio pela dívida da sociedade tem fundamento no artigo 135 do Código Tributário Nacional, norma que condiciona a atribuição de responsabilidade à prática de ato doloso ou fraudulento pelo sócio, com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos.

Nos casos de empresas fechadas por força da crise do coronavírus, especialmente aquelas impedidas de desenvolver suas atividades por ordem do próprio Estado, não vemos a menor possibilidade de se aplicar o referido dispositivo legal para o fim de responsabilizar os sócios, pois, à toda evidência, não há como atribuir culpa a eles pelo evento extraordinário e imprevisível que provocou o encerramento de suas empresas.

Sobre a aplicação da Súmula 435 do STJ, é necessário fazer uma diferenciação entre a situação dos sócios das empresas vítimas da pandemia do coronavírus e a dos sócios das empresas que tiveram seus casos analisados pelo STJ. Como estamos diante de uma situação sem precedentes, diferente de tudo o que o STJ analisou para formar o entendimento consolidado na Súmula 435, espera-se que os Tribunais analisem os casos dos sócios prejudicados pelo coronavírus sob um novo ponto de vista, e que concluam que os sócios não podem ser responsabilizados.

A defesa dos sócios contra uma possível tentativa do fisco de responsabilizá-los também deve ter como base o disposto no artigo 393 do Código Civil, que prevê “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.” A atual crise causada pela pandemia do coronavírus configura, sem a menor dúvida, hipótese de força maior, a justificar a impossibilidade de as empresas por ela afetadas continuarem com suas atividades e honrarem suas obrigações tributárias.

Enfim, há diversos argumentos para afastar a responsabilidade dos sócios pelas dívidas que forem deixadas por suas empresas em meio ao cenário de caos que estamos vivendo. Esperamos que o judiciário entenda da mesma forma, pois seria absolutamente injusto, diante de tudo que estamos passando, ver empresários perdendo seus patrimônios por conta de um evento sobre o qual não tiveram a menor culpa.

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