Palco de muitos conflitos ocasionados pela crise da pandemia do coronavirus, o Judiciário tem recebido diariamente dezenas, quiçá centenas de medidas, das mais variadas espécies, tratando dos efeitos negativos causados pela COVID-19.
Parte significativa dessa nova demanda, sem dúvida alguma, é representada por temas envolvendo impossibilidade de cumprimento de obrigações pecuniárias e, invariavelmente, abrange pedidos como prorrogação de prazos de pagamento de parcelas de compromissos, suspensão de exigibilidade da dívida, revisão contratual de encargos moratórios, dentre outros.
Tratando-se de cenário incomum, e de futuro incerto, o que mais se exige dos magistrados na tomada de decisões nesse difícil momento é parcimônia e sensibilidade. Não por acaso, como dissemos em publicação anterior, o CNJ recomendou aos juízes de todo o país que avaliassem com cautela o deferimento de medidas de urgência durante este período.
Naquilo que toca especificamente a relação entre credor e devedor, a nosso ver não cabe ao Judiciário intervir, mesmo que diante do estado de calamidade, para tentar sopesar o mal que a situação pode causar. O momento exige, nesse particular, que a sociedade se autorregule, e quando o Estado busca fazer essa tarefa, por exemplo, suprimindo direitos e obrigações, alterando encargos moratórios, concedendo reduções ou vedando medidas de parte a parte, a pretexto de equacionar a discussão, passa a ser agente aumentador do desequilíbrio, com o risco de gerar um dano ainda maior na relação, então causado pela pandemia.
Se por um lado a crise do coronavirus está a causar à parte devedora, premida pela escassez de recursos diante da paralização de suas atividades, o risco de responder pelas consequências da mora, é igualmente certo afirmar que o não recebimento do crédito atingirá o caixa e as finanças do credor, com efeito cascata nas obrigações desse perante fornecedores e seus credores. Quando o Judiciário interfere, para tentar corrigir situação que lhe parece injusta, acaba se tornando um fardo adicional no conjunto.
Felizmente, a recomendação do CNJ parece estar sendo seguida pela maioria dos juízes, e o que se tem visto com alguma frequência é a busca do equilíbrio e do bom senso. Com efeito, a despeito da razoabilidade de muitos pedidos – não obstante também um considerável oportunismo de muitos, é bem dizer –, a verdade é que os magistrados, de um modo geral, parecem estar agindo com assertividade, e endereçando corretamente os diversos litígios que se apresentam.
A decisão mais recente, que chamou atenção, foi a do Desembargador Cesar Ciampolini, do E. Tribunal de Justiça de São Paulo,[1] em caso envolvendo pedido formulado pela parte autora de uma ação, para que lhe fosse restituído o valor depositado judicialmente em caução (garantia) de processo que objetivava a declaração de inexigibilidade de um título de crédito.
O pedido foi indeferido, e em sua decisão o magistrado acentuou que a pretensão não merecia acolhimento porque apesar da evidente consequência advinda da pandemia, o fato é que a ação movida pela parte foi julgada improcedente em primeira instância, logo, a aparência do bom direito (fumus boni iuris), no caso, militava em favor da parte contrária, credora do título, a quem, portanto, caberia levantar o valor:
“Não podem ser negadas as devastadoras consequências da inesperada catástrofe que infelicita e põe em risco os próprios fundamentos da economia nacional.
Todavia, não vejo como, no caso concreto, dar preferência às necessidades de caixa da apelante, vencida em primeira instância (a principio portanto, sem fumus boni iuris), em detrimento da apelada, vencedora, que, por cento, também as terá, como as terão todas as empresas em atividade nesta quadra dificílima da economia. O levantamento de dinheiro depositado nos autos de ações judiciais civis haverá de ser feito, naturalmente, em prol de quem ostente aparência de bom direito, atendendo, além disso, os necessários requisitos de garantia da instância.”
O Desembargador cita em sua fundamentação trecho de matéria publicada no jornal Valor Econômico, em que se destacou que: “temos que lembrar o óbvio: os credores das empresas são também outras empresas. Se todos pararem de pagar ninguém recebe e a crise se protrai no tempo. Falta de caixa é fato, mas o não pagamento a agrava ainda mais, porque outros deixam de receber”.
A decisão, à toda evidência, nos parece absolutamente acertada. Por maiores que sejam as aflições e dificuldades trazidas ao mercado pela crise da pandemia do coronavirus, o Judiciário não pode perder de vista o princípio da legalidade na tomada de suas decisões, sob pena de causar um mal ainda maior à sociedade, que é o da insegurança jurídica.
[1] Apelação n° 1005159-45.2016.8.26.0292
16 setembro, 2024
28 agosto, 2024
27 agosto, 2024
24 julho, 2024
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