Por Eduardo Galvão Rosado e Thiago Albertin Gutierre
Não obstante as novas regras trabalhistas criadas pelo Governo em meio à pandemia, como a Medida Provisória nº 936 que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda possibilitando a suspensão contratual e a redução de salários, fato é que muitos empregadores, preocupando-se com a preservação da saúde e sensibilizados com a condição financeira de seus empregados, adotaram medidas voluntárias de caráter humanitário.
É o caso do empregador que, ao invés de realizar a suspensão contratual (ou reduzir salários) a que tem direito (fazendo com que o empregado, nesse caso, fique à mercê do benefício a ser concedido pelo Governo), convenciona que o empregado deverá ficar em casa sem trabalhar (pois a atividade não comporta o home office), mas com a integralidade dos salários.
O problema é que alguns empregados, aproveitando-se desse benefício, buscam fazer renda extra (mediante “bicos” e serviços eventuais a terceiros) desrespeitando, assim, não só as orientações e as medidas de prevenção da COVID-19, mas, também, o ajustado com o seu empregador.
Como se denota, a questão não é só econômica ou contratual, mas, principalmente, de natureza pública, pois, como essa atitude, o empregado age de forma desleal realizando trabalhos para terceiros no horário de seu contrato de trabalho (período esse que deveria ficar em casa), e acaba colocando em risco a saúde do empregador (quando for convocado a retornar), da sua própria família e, ainda, de toda a coletividade.
E o que pode ser feito nessa situação?
Embora não exista vedação legal de o empregado trabalhar concomitantemente para mais de um empregador distinto (desde que em horários compatíveis e para empresas não concorrentes), salienta-se que não se trata dessa situação e, muito menos, de alguma das hipóteses de suspensão ou de interrupção do contrato de trabalho. Na realidade, com a referida concessão feita pelo empregador (e aceita pelo empregado), operou-se entre as partes, ainda que temporariamente, uma espécie de aditamento tácito do contrato de trabalho e que, portanto, deve ser respeitado, sob pena de punição.
Frisa-se que algumas normas podem ser invocadas, ainda que analogicamente, para justificar o direito do empregador de, nesse caso, adotar as medidas que entender cabíveis, tais como aquela prevista no artigo 138 da CLT que assim dispõe:
“Art. 138 – Durante as férias, o empregado não poderá prestar serviços a outro empregador, salvo se estiver obrigado a fazê-lo em virtude de contrato de trabalho regularmente mantido com aquele.”
Observe-se que, com exceção da situação em que o empregado tem, realmente, dois (ou mais) empregos distintos, o labor durante as férias para outro tomador, por se tratar de norma de ordem pública e destinada a saúde, higiene e segurança do trabalho, é proibido.
Ora, seguindo esse raciocínio, se a referida proibição visa proteger o trabalhador individualmente, com muito mais razão pode-se exigir determinado comportamento que garanta o bem de toda a coletividade.
As medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública previstas na Lei nº 13.979/2020 e a declaração de estado de calamidade no Brasil, prevista no Decreto Legislativo Federal nº 06/2020, também podem ser aplicadas para o caso em debate. A título de exemplo, destacam-se, respectivamente, os artigos 3º e 5º da citada Lei, in verbis:
“Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
I – isolamento;
II – quarentena;
(…)
§ 4º As pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei. (…)”
“Art. 5º Toda pessoa colaborará com as autoridades sanitárias na comunicação imediata de:
I – possíveis contatos com agentes infecciosos do coronavírus;
II – circulação em áreas consideradas como regiões de contaminação pelo coronavírus”.
Como se vê, embora não exista legislação específica que trate do tema aventado nesse artigo, é indiscutível que é dever de todos a preservação da saúde, bem como que um direito individual (de auferir renda extra por meio de “bicos”) não pode se sobrepor ao direito de uma coletividade (de evitar a disseminação de um vírus que, até o momento, já levou à óbito quase 6 mil pessoas no Brasil).
Mas qual punição pode ser aplicada? Nesse caso, há risco trabalhista para o empregador?
Se considerarmos que o empregado, nessa situação, desrespeitou o contrato de trabalho e, ainda, ofendeu normas balizares de saúde pública, a sua conduta poderia ser enquadrada nas alíneas “b” (incontinência de conduta ou mau procedimento) e “h” (ato de indisciplina ou de insubordinação), do artigo 482 da CLT, que trata da justa causa para a rescisão do contrato de trabalho.
A primeira hipótese (alínea “b”), se configura quando o modo de agir do empregado está em desarmonia com as regras de moral. No caso, fazer “bicos” durante a pandemia, mesmo recebendo salários na íntegra de seu empregador que, por questão humanitária e para preservar a sua saúde, havia convencionado a sua permanência em casa é, sem dúvida alguma, uma atitude imoral. Nesse sentido é a jurisprudência:
“Rescisão indireta. Mau procedimento. O mau procedimento é a mais genérica das faltas graves e pode ser conceituado como comportamento irregular do empregado incompatível com as normas exigidas pelo senso comum do homem médio (…). Data de publicação 23/05/2019. Processo nº 1001347-24.2018.5.02.0201”.
Em relação a segunda hipótese (alínea “h”), consiste no descumprimento de ordens pessoais (insubordinação) ou de caráter geral (indisciplina), dadas pelo empregador o que, também, parece patente no caso em tela.
Ocorre que esse raciocínio (de rescisão por justa causa), pode sofrer muita resistência por parte do Judiciário, seja em razão do princípio da proporcionalidade, seja em razão dos princípios fundamentais do valor social do trabalho e da continuidade do emprego. Ademais, deverá ser levado em conta que o cenário atual é completamente atípico e sem precedentes e o empregado tem liberdade de buscar melhores condições financeiras para a sua família.
Portanto, o mais recomendável é que o empregador, ciente e não concordando com a situação, advirta o empregado e o alerte dos riscos de uma possível justa causa (notadamente pela falta de lealdade e comprometimento com a saúde/bem estar de todos). Ademais, também poderá se valer das medidas legais para se evitar a circulação de pessoas (inclusive para os domésticos), tais como (i) a concessão e antecipação de férias; (ii) home office (se for possível); e (iii) a suspensão do contrato de trabalho.
12 setembro, 2024
21 março, 2024
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