Ainda no início da atual pandemia, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a Recomendação nº 63 (31/03/2020), assinada pelo Ministro Dias Toffoli, que traz orientações aos juízes e tribunais para a condução dos processos de recuperação judicial durante a crise pandêmica.
Dentre as medidas sugeridas encontram-se (i) a prorrogação do prazo de duração do período de blindagem (stay period), (ii) a autorização para que as empresas apresentem propostas modificativas a eventual plano de recuperação judicial já aprovado e (iii) o impedimento da realização de atos executivos de natureza patrimonial em desfavor das empresas em recuperação.
Contudo, essas recomendações têm sido veementemente rejeitadas na Justiça paulista, por serem emanadas de órgão que não possui função jurisdicional[1] e por violarem a independência jurídica dos magistrados, pressupondo que eles não reuniriam capacidade e responsabilidade para decidirem segundo as disposições da própria Lei de Recuperação Judicial. Daí duvidosa constitucionalidade do ato.
Ainda mais relevante é a preocupação com a tentativa de ingerência do CNJ no cumprimento dos planos de recuperação judicial em ilegal sobreposição à autonomia dos credores.
De fato, uma coisa é sugerir a realização de assembleias de forma virtual – tema pertinente abordado em artigo anterior – outra coisa é estimular que o Judiciário interfira em deliberações de competência exclusiva dos credores, que, reunidos nessas assembleias, formalizam com a empresa em recuperação o seu plano de soerguimento, produzindo um negócio jurídico perfeito.
Importante frisar que essa concepção de soberania do veredito dos credores não caracteriza mero ponto de vista ideológico, mas sim um princípio extraído da Lei, que confere ao juiz o poder de examinar os aspectos jurídicos do plano de recuperação judicial e não suas condições propriamente ditas.
Exatamente sob esse fundamento, o juiz Paulo Furtado de Oliveira Filho, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital, ao analisar pedido de adiamento de pagamentos por uma empresa em recuperação asseverou que “A permissão para a prorrogação ou suspensão dos prazos previstos em planos de recuperação judicial é de exclusiva competência da assembleia-geral de credores, dotada de autonomia, não competindo ao Poder Judiciário, dotado de soberania, alterar negócio jurídico perfeito, acabado e chancelado na forma da legislação infraconstitucional e com respaldo na Constituição.” (processo nº 0038328-39.2013.8.26.0100).
Na mesma direção foi a declaração do desembargador Manoel Pereira Calças, da 1ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar um pedido de terceira prorrogação do stay period: “(compete) exclusivamente aos juízes interpretar as leis e, com independência jurídica, nos termos da Constituição Federal, reconhecer as situações fáticas que se enquadram nas hipóteses legais de casos fortuitos ou de força maior, tal qual ocorre com a pandemia da Covid-19.” (agravo nº 2076263-44.2020.8.26.0000).
Portanto, não está se falando em intransigência absoluta; todos os pedidos submetidos pelas empresas em recuperação podem e devem ser apreciados pelo juízo competente, avaliando-se caso a caso, com ponderação e razoabilidade, de modo a evitar aproveitamento ou abuso de quaisquer das partes.
Requerimentos como a suspensão de pagamentos e o adiamento de assembleias devem passar pelo crivo dos credores, e estes, a seu turno, deverão sopesar a melhor alternativa, levando em consideração se eventual decretação de falência representará na prática a melhor saída.
Nesse momento, também é importante assídua atuação do administrador judicial, fornecendo subsídios para análise da real situação financeira da empresa em recuperação, para que seja possível concluir se o contexto efetivamente possui relação com as medidas sanitárias implementadas para conter o alastramento do vírus.
Por isso, concordamos que o Judiciário está apto a decidir com equilíbrio, dentro da legalidade e com a participação efetiva dos credores, não podendo se valer de forma indiscriminada da Recomendação em exame, a qual, como explicado, carece de força normativa a vincular decisões judiciais.
[1] Para o Supremo Tribunal Federal, as competências do Conselho Nacional de Justiça são exclusivamente de ordem administrativa, financeira e disciplinar da magistratura (ADI 3.367/DF).
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