Desconsideração da personalidade jurídica a qualquer tempo

04/08/2020

Por Teixeira Fortes Advogados Associados

A desconsideração da personalidade jurídica, como já descrevemos nos artigos publicados em 29/10/2018 e  09/05/2016, é um instituto que objetiva impedir a prática de fraude e abuso de direito por parte da pessoa jurídica e de seus sócios, permitindo ao credor a relativização da autonomia patrimonial conferida pela  personalidade jurídica da empresa, quando esta é utilizada como instrumento para a prática de ilícitos.

A teoria da desconsideração advém da tese norte-americana disregard doctrine, e possui previsões específicas em diversas legislações do direito brasileiro, sendo a regra geral aquela descrita pelo artigo 50 do Código Civil de 2002, que sofreu alteração em sua redação no ano de 2019 pela Lei nº 13.874, passando a ter a seguinte previsão:

“Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.”

Além disso, com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil em março de 2016, o procedimento para requerer a Desconsideração da Personalidade Jurídica passou a ser realizado por meio de incidente processual, cujas regras de processamento estão dispostas nos artigos 133 e seguintes do diploma legal.

Ao analisarmos as características e peculiaridades do instituto, a questão que surge é se existe prazo para o exercício deste direito pelo credor, ante a ausência de previsão legal nesse sentido, pois nem mesmo a recente alteração efetuada no Código Civil e a nova Lei Processual foi capaz de suprir esta lacuna.

Mas diante da omissão da lei em não estabelecer prazo algum, naturalmente se mantém o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que em meados de 2013 já havia se manifestado sobre o tema, qualificando a teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica como “direito potestativo que não se extingue pelo não-uso”. É o que se extrai do aresto do Ministro Luis Felipe Salomão no julgamento do Recurso Especial nº 1.312.591/RS e Recurso Especial nº 1.180.714/RJ:

*REsp. nº 1.312.591/RS[1]:

“DIREITO CIVIL E COMERCIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DIREITO POTESTATIVO QUE NÃO SE EXTINGUE PELO NÃO-USO. PRAZO PRESCRICIONAL REFERENTE À RETIRADA DE SÓCIO DA SOCIEDADE. NÃO APLICAÇÃO. INSTITUTOS DIVERSOS. REQUISITOS PARA A DESCONSIDERAÇÃO. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ.
1. A desconsideração da personalidade jurídica é técnica consistente na ineficácia relativa da própria pessoa jurídica – rectius, ineficácia do contrato ou estatuto social da empresa -, frente a credores cujos direitos não são satisfeitos, mercê da autonomia patrimonial criada pelos atos constitutivos da sociedade.
2. Ao se pleitear a superação da pessoa jurídica, depois de verificado o preenchimento dos requisitos autorizadores da medida, é exercido verdadeiro direito potestativo de ingerência na esfera jurídica de terceiros – da sociedade e dos sócios -, os quais, inicialmente, pactuaram pela separação patrimonial.
3. Correspondendo a direito potestativo, sujeito a prazo decadencial, para cujo exercício a lei não previu prazo especial, prevalece a regra geral da inesgotabilidade ou da perpetuidade, segundo a qual os direitos não se extinguem pelo não-uso. Assim, à míngua de previsão legal, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, quando preenchidos os requisitos da medida, poderá ser realizado a qualquer tempo.
4. Descabe, por ampliação ou analogia, sem qualquer previsão legal, trazer para a desconsideração da personalidade jurídica os prazos prescricionais previstos para os casos de retirada de sócio da sociedade (arts. 1003, 1.032 e 1.057 do Código Civil), uma vez que institutos diversos. […]”

*REsp. nº 1.180.714/RJ[2]:

“DIREITO CIVIL E COMERCIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. SEMELHANÇA COM AS AÇÕES REVOCATÓRIA FALENCIAL E PAULIANA. INEXISTÊNCIA. PRAZO DECADENCIAL. AUSÊNCIA. DIREITO POTESTATIVO QUE NÃO SE EXTINGUE PELO NÃO-USO. DEFERIMENTO DA MEDIDA NOS AUTOS DA FALÊNCIA. POSSIBILIDADE. AÇÃO DE RESPONSABILIZAÇÃO SOCIETÁRIA. INSTITUTO DIVERSO. EXTENSÃO DA DISREGARD A EX-SÓCIOS. VIABILIDADE.
1. A desconsideração da personalidade jurídica não se assemelha à ação revocatória falencial ou à ação pauliana, seja em suas causas justificadoras, seja em suas consequências. A primeira (revocatória) visa ao reconhecimento de ineficácia de determinado negócio jurídico tido como suspeito, e a segunda (pauliana) à invalidação de ato praticado em fraude a credores, servindo ambos os instrumentos como espécies de interditos restitutórios, no desiderato de devolver à massa, falida ou insolvente, os bens necessários ao adimplemento dos credores, agora em igualdade de condições (arts. 129 e 130 da Lei n.º 11.101/05 e art. 165 do Código Civil de 2002).
2. A desconsideração da personalidade jurídica, a sua vez, é técnica consistente não na ineficácia ou invalidade de negócios jurídicos celebrados pela empresa, mas na ineficácia relativa da própria pessoa jurídica – rectius, ineficácia do contrato ou estatuto social da empresa -, frente a credores cujos direitos não são satisfeitos, mercê da autonomia patrimonial criada pelos atos constitutivos da sociedade.
3. Com efeito, descabe, por ampliação ou analogia, sem qualquer previsão legal, trazer para a desconsideração da personalidade jurídica os prazos decadenciais para o ajuizamento das ações revocatória falencial e pauliana.
4. Relativamente aos direitos potestativos para cujo exercício a lei não vislumbrou necessidade de prazo especial, prevalece a regra geral da inesgotabilidade ou da perpetuidade, segundo a qual os direitos não se extinguem pelo não-uso. Assim, à míngua de previsão legal, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, quando preenchidos os requisitos da medida, poderá ser realizado a qualquer momento. […]”

Segundo asseveram os acórdãos do C. STJ, presentes os seus requisitos, a Desconsideração da Personalidade Jurídica é, portanto, um direito potestativo que não está sujeito aos fenômenos da prescrição e, ante a inexistência de previsão legal para o exercício deste direito, ele também não se sujeita à decadência, podendo ser pleiteado pelo credor a qualquer momento, e, por ser inesgotável, o não-uso não resulta na sua extinção.

De acordo com o princípio da responsabilidade patrimonial, cada pessoa responde pelos seus débitos com todos os seus bens, presentes ou futuros. Com a constituição de uma personalidade jurídica é feita a divisão entre os bens particulares dos sócios e os bens da empresa, chamada autonomia patrimonial, isso porque não podem os sócios serem compelidos a responderem com seus bens pessoais pelos débitos da empresa, assim como a pessoa jurídica não responde pelas dívidas dos sócios.

Contudo, quando a autonomia patrimonial é utilizada pela empresa ou pelos sócios como instrumento para fraudar credores ela pode ser momentaneamente afastada, permitindo-se a afetação dos bens do sócio por meio da Desconsideração da Personalidade Jurídica, ou dos bens da empresa com a Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica.

Não se trata, portanto, de uma anulação da personalidade jurídica, mas sim de uma ineficácia momentânea, que produz efeitos apenas entre as partes para o fim de derrubar a fraude praticada por meio da confusão patrimonial ou do desvio de finalidade.

É, pois, um mecanismo de ingerência na esfera jurídica de terceiros e, portanto, um direito potestativo, que, conforme qualificado pelo C. Superior Tribunal de Justiça, é inesgotável ou perpétuo, pois pela sua natureza não se sujeita aos fenômenos jurídicos de extinção pelo não-uso (prescrição e decadência).

O instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica é, portanto, uma importante ferramenta para a atuação na recuperação de créditos, voltada a desnudar as manobras de ocultação patrimonial praticadas pelos devedores com intuito de fraude, sob a proteção da autonomia patrimonial da personalidade jurídica. Logo, o reconhecimento da sua inafastabilidade pelo decurso do tempo, pelo STJ, demonstra que o Judiciário não chancela manobras ilícitas e reforça a posição dos credores.


[1] STJ – Recurso Especial nº 1.312.591/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, Julgado em 11/06/2013.

[2] STJ – Recurso Especial nº 1.1870.714/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, Julgado em 05/04/2011.

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