Ações judiciais com pedidos de reparação por dano moral estão entre aquelas que mais demandam nossos Tribunais atualmente no âmbito do direito privado. Diante desse cenário, e com a justificativa de evitar a chamada indústria do dano moral, surgiram entendimentos doutrinários, pacificados pela jurisprudência, com intuito de desestimular ações que se fundamentam em “mero aborrecimento”.
Sem adentrarmos à questão de dificuldade para comprovar o dano que ultrapassa o “mero aborrecimento”, é importante destacarmos prática recorrente de nossas Cortes estaduais, que, ao condenarem o ofensor com indenizações padrões e previamente “tarifadas”, por assim dizer, não geram um desejado efeito punitivo e pedagógico da reparação extrapatrimonial, e acabam por estimular que o agente ofensor não se importe com a reiteração da conduta reprovável.
Em linhas gerais, a quantificação da indenização por danos morais segue critérios importantes para que se evite a fixação de valores ínfimos ou exorbitantes. São eles: a gravidade do dano, a sua extensão, a posição social e econômica das partes, as finalidades compensatória e punitiva da indenização, devendo ser esta suficiente para coibir novos abusos do ofensor, sem que, todavia, permita o enriquecimento sem causa do ofendido.
Todavia, em determinados casos, principalmente naqueles em que o agente ofensor possui histórico de condutas reprováveis, o que se vê é uma verdadeira “padronização” de valores de dano moral, sem que sejam considerados os critérios jurídicos para a quantificação. Tal situação, a bem da verdade, explicita uma ofensa dupla à vítima: primeiramente, pelo causador da lesão e, após a quantificação de valor padrão, pelo Judiciário.
Isto porque a fixação de valor padrão a título de dano moral não desestimula a prática reiterada da ofensa. Somado a tal fato, tem-se ainda os critérios limitadores na quantificação do dano, como a capacidade econômica das partes, especialmente a do agente ofensor, e o receio da configuração do enriquecimento sem causa do ofendido.
Tais fatores, notadamente, acabam por premiar o agente ofensor. Verifica-se uma inversão de valores: enquanto os critérios limitadores e a padronização de quantias de dano moral amenizam o ato ilícito (a ofensa) e não rechaçam a conduta reprovável do agente ofensor, que reiteradamente desrespeita o direito extrapatrimonial e o próprio Judiciário, imputa-se à vítima a responsabilização da “industrialização” do dano moral, que almejaria o enriquecimento ilícito.
No prefácio do livro “Desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado”, a professora Cláudia Lima Marques assinala sabiamente que:[1]
“Estamos quase nos acostumando a menosprezar os danos de massa, que os fornecedores perpetuam em nosso mercado – quase querendo culpar os consumidores por uma “indústria”, ou melhor, por seu empenho em defender seus direitos violados em massa, querendo ressarcimento. Nesse contexto perigoso menosprezo pelo pequeno (grande) dano do outro, a obra de Marcos Dessaune é como um vento fresco, que renova o ambiente e obriga um olhar diferenciado: sim, há um dano social nesse repetir incontável de pequenos danos impunes e “negativamente exemplares” ou, como afirma o autor, um desvio produtivo – relevante econômica, social e juridicamente – no desperdício evitável de tempo dos consumidores.”
Infelizmente, a tutela reparatória de nossos Tribunais não tem por objetivo fazer com que o agente não reitere sua conduta reprovável. Assim, o que se vê é um favorecimento em relação ao ofensor, que ao poder previamente “tarifar” sua conduta permite-se sopesar a vantagem de reiteradamente praticar o ilícito.
A título de exemplo, de uma simples pesquisa de decisões judiciais sobre recusas indevidas de cobertura por plano de saúde, é possível verificar a padronização de valores de dano moral. Elencamos abaixo alguns exemplos para uma melhor demonstração:
* Caso de recusa de cobertura de serviço de home-care em vítima de acidente vascular cerebral. Dano moral fixado em R$ 10.000,00 (dez mil reais):
“Plano de saúde. Preliminar de mérito. Cerceamento de defesa. Prova pericial despicienda. Relatório médico conclusivo. Necessidade de tratamento em regime domiciliar. Cerceamento de defesa inocorrente. Contrato de assistência médica e/ou hospitalar. Home-care. Autor vítima de acidente vascular cerebral. Complicação do quadro clínico após diagnostico de broncopneumonia aspirativa. Comprometimento das atividades rotineiras e necessidade uso de sondas e realização de fisioterapia motora e respiratória diárias. Pretensão à prestação de serviços médico-hospitalares em regime domiciliar. Necessidade de acompanhamento técnico de enfermagem. Negativa de cobertura. Conduta que implica na concreta inutilidade do negócio protetivo. Desequilíbrio contratual no exercício abusivo do direito que se evidencia na desigualdade material de poder. Prestadora que confunde boa-fé com interesse próprio. Menoscabo com o consumidor. Quebra do dever de lealdade. Interpretação que fere a boa-fé objetiva e contrapõe-se à função social do contrato (arts. 421 e 422 do Cód. Civil). Direito subjetivo do consumidor que se conecta ao princípio fundamental da dignidade humana (art. 1º, III, da CF). Lesão à equidade. Cobertura devida. Incidência dos arts. 4º, caput, 7º, 46, 47 e 51, IV, do CDC. Sentença mantida. Danos morais. Negativa da prestadora de serviços que amplifica a aflição psíquica e causa situação de impotência. Indenização cabível. Malferimento do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), vértice básico do dano moral. Quantum indenizatório (R$ 10.000,00). Montante proporcional e compatível com a extensão do dano (art. 944 do CC). Sentença mantida. Recurso desprovido.”[2] (destacou-se)
* Caso de recusa de medicamento indicado por prescrição médica. Dano moral fixado em R$ 10.000,00 (dez mil reais):
“PLANO DE SAÚDE. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. I. Negativa de cobertura ao medicamento Dacogen. Caráter abusivo reconhecido. Existência de prescrição médica. Fármaco que se mostrou necessário à tentativa de recuperação da saúde da paciente, acometida por colagiocarcinoma hepático. Irrelevância da previsão no rol da ANS, segundo as diretrizes técnicas de utilização. Aplicação do disposto no artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor e das Súmulas n. 95 e 102 desta Corte. II. Ofensa, ainda, ao princípio da boa-fé que deve nortear os contratos consumeristas. Atenuação e redução do princípio do pacta sunt servanda. Incidência do disposto no artigo 421 do Código Civil. III. Danos materiais. Configuração. Obrigação de reparação integral das despesas médico-hospitalares indevidamente assumidas pela autora. Decorrência do princípio da reparação integral. Inteligência do artigo 402 do Código Civil. Precedente. Carência de prova documental, todavia, a indicar desembolso maior que o reconhecido, respeitados os limites da lide instaurada (artigo 329, CPC). IV. Danos morais. Configuração. Indevida recusa de cobertura que impôs à paciente desassossego anormal, com o agravamento de seu quadro psicológico. Lesão que é considerada in re ipsa. Precedentes. Arbitramento da indenização em R$ 10.000,00 (dez mil reais). Atendimento aos parâmetros do artigo 944 do Código Civil. V. Verba honorária. Fixação no montante de 10% (dez por cento) do valor da causa. Mínimo admitido no artigo 85, § 2º, do Código de Processo Civil. Inadmissível a readequação pretendida. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE. APELO DA RÉ DESPROVIDO, PARCIALMENTE PROVIDO O ADESIVO DA AUTORA.”[3] (destacou-se)
* Caso de recusa de tratamento cirúrgico urgente diante de diagnóstico de bronquiolite. Dano moral fixado em R$ 10.000,00 (dez mil reais):
“PLANO DE SAÚDE. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. I. Negativa de cobertura a atendimento médico-hospitalar do autor. Fundamento em carência contratual. Inadmissibilidade. Hipótese de urgência caracterizada. Prescrição para procedimento cirúrgico em caráter urgente, dado o diagnóstico de quadro de bronquiolite no infante de tenra idade. Aplicação do disposto no artigo 12, inciso V, letra “c”, da Lei 9.656/98 e do artigo 51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor. Inteligência da Súmula nº 103 deste E. Tribunal e da Súmula nº 597 do STJ. Precedentes desta Corte. II. Ofensa ao princípio da boa-fé que deve nortear os contratos consumeristas. Atenuação e redução do princípio do pacta sunt servanda. Incidência do disposto no artigo 421 do Código Civil. III. Danos morais. Configuração. Indevida recusa de cobertura que impôs ao paciente desassossego anormal, com o agravamento de seu quadro psicológico, sobretudo dada a condição de hipervulnerabilidade caracterizada na espécie. Precedentes. Indenização arbitrada em R$ 10.000,00 (dez mil reais), na forma do artigo 944 do Código Civil. Sentença, neste ponto, modificada. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE. APELO DO AUTOR PROVIDO, DESPROVIDO O DA RÉ.”[4] (destacou-se)
* Caso de recusa de cobertura/reembolso de exame para diagnóstico de doença. Dano moral fixado em R$ 10.000,00 (dez mil reais):
“Apelação cível. Plano de saúde. Autogestão. Cobertura para exame PET-CT. Danos morais e materiais. Sentença de procedência. Insurgência da operadora. Plano de saúde administrado sob a modalidade de autogestão. Inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. 1.Rol da ANS. Diretrizes de utilização (DUT). Situação dos autos prevista na DUT nº60 como de cobertura obrigatória. Negativa indevida. Caracterização de inadimplemento contratual da ré. 2.Ainda que assim não fosse, é possível a revisão de cláusulas contratuais sob a ótica do direito civil. Boa-fé objetiva e função social do contrato. Cláusula que limita tratamento prescrito pelo médico fere a boa-fé objetiva e desnatura a própria finalidade do contrato. Se a doença tem cobertura contratual, os tratamentos disponíveis pelo avanço da medicina também terão. Aplicação da Súmula 96 desta Corte de Justiça. 3.Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura e custeio de tratamento, sob o argumento de natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS. Interpretação da Súmula 102 desta Corte. 4.Reembolso integral do valor gasto com exame, tendo em vista que a despesa não decorreu de livre escolha do paciente ou da situação prevista no art. 12, VI da lei 9656/98. No caso, a ré não ofertou cobertura. O inadimplemento do contrato carreia à ré obrigação de reparar integralmente o dano material imposto à autora. Inteligência dos arts. 927 e 186, CC. 5. Caracterização de dano moral. Ilícito que consistiu na indevida recusa, não se tratando de questão meramente contratual. Negativa agravou a situação de aflição psicológica e de angústia. Indenização fixada em R$10.000,00 mantida. Autora portadora de grave doença. Apelação não provida.”[5] (destacou-se)
As decisões destacadas acima dizem com situações de recusa de cobertura por plano de saúde, com gravidades distintas, no entanto, com fixação de valor padrão a título de dano moral (R$ 10.000,00).
O comportamento recalcitrante do agente ofensor demonstra que no mais das vezes é mais vantajoso persistir na conduta reprovável do que cessar a reiteração do ilícito. De fato, sabendo-se o percentual de lesados que procuram a justiça, a chance de se alcançar uma composição após o ajuizamento da ação, e finalmente, podendo-se prever o valor de futura condenação, o agente ofensor tem a seu favor uma estrada pavimentada de incentivos econômicos.
A repressão de atos ilícitos configura um dos principais objetivos da ordem jurídica. Por isso, é lamentável que condutas reprováveis sejam amenizadas e “tarifadas”, com verdadeira banalização do dano moral. Desqualifica-se com isso o caráter punitivo e pedagógico das reparações civis.
[1] DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 15.
[2] Apelação nº 1107283-95.2019.8.26.0100, 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Des. Rômulo Russo, data de julgamento: 27/08/2020.
[3] Apelação nº 1011943-03.2019.8.26.0011, 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Des. Donegá Morandini, data de julgamento: 25/08/2020.
[4] Apelação nº 1008941-15.2020.8.26.0100, 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Des. Donegá Morandini, data de julgamento: 27/08/2020.
[5] Apelação nº 1067536-41.2019.8.26.0100, 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Des. Edson Luiz De Queiroz, data de julgamento: 26/08/2020.
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