Justiça permite relativização da impenhorabilidade do bem de família

30/09/2020

Por Alice Mendes de Carvalho

A impenhorabilidade do bem de família está prevista na Lei nº 8.009/90, trazida ao mundo jurídico no âmbito do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à moradia, ambos garantidos pela Constituição Federal.

Devido à amplitude da proteção, a discussão sobre a impenhorabilidade do bem de família sempre existiu, sendo poucas as exceções em que se permite a penhora, todas previstas no artigo 3º da Lei 8.009/90.

Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, a impenhorabilidade do bem de família tornou-se alvo de discussões e decisões reveladoras de certa relativização. Isso porque o artigo 833, em seu inciso II, trouxe exceções à impenhorabilidade de bens que, utilizadas por analogia, demonstram a possibilidade de penhora do bem de família. Confira-se o referido artigo:

“Art. 833. São impenhoráveis:
(…)
II – os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;”

Diante desse cenário, a 12ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo[1] entendeu, em recente decisão, que é possível a penhora do bem de família quando o imóvel possuir valor elevado de avaliação, desde que parte do valor seja reservado para que o devedor possa adquirir outro imóvel, em condições dignas de moradia.

No caso em comento, o recurso de apelação foi interposto por terceira residente em imóvel penhorado em razão de dívida contraída por seu ex-marido. O Relator, Desembargador Castro Figliola, reconheceu que o imóvel se tratava de bem de família, pelo fato de a mulher residir no local, com suas duas filhas, antes mesmo da constrição. Entretanto, devido ao elevado valor do bem – avaliado em R$ 4,5 milhões –, o magistrado considerou-o suntuoso e reconheceu que a penhora deve ser permitida nessas condições, fundamentando sua decisão no sentido de que “não se pode permitir que a proteção com foco na dignidade da pessoa humana seja desvirtuada de modo a assegurar que imóveis de elevadíssimo valor permaneçam intocados, em detrimento do credor”.

Em outras palavras, o princípio da dignidade da pessoa humana, norteador da impenhorabilidade do bem de família, não deve ser considerado como absoluto, a ponto de impedir penhora de imóveis de alto valor, cuja venda permitiria a aquisição de outros bens, além do adimplemento da obrigação com o credor.

A relativização feita pela 12ª Câmara de Direito Privado não implica desconsiderar totalmente a condição de bem de família do imóvel; por essa razão, o Colegiado assim proferiu sua decisão:

“(…) Imóvel de alto valor, ainda que reconhecido como bem de família, pode ser penhorado e alienado, desde que com a garantia de reserva, ao devedor ou ao terceiro meeiro, de parte suficiente do valor alcançado, para que possa adquirir outro imóvel que propicie à família moradia talvez não tão luxuosa, mas tão digna quando a proporcionada pelo bem constrito”.

Ou seja, a solução aplicável ao conflito compatibilizou o direito do credor com o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à moradia da família do devedor.

Em demandas judiciais nas quais se busca a execução de débitos, é comum o abuso do direito e a má-fé em relação à impenhorabilidade imposta sobre o bem de família. O devedor apropria-se desse direito com o intuito de não adimplir as obrigações por ele assumidas perante terceiros.

Como se vê, a decisão destacada no presente artigo abre precedente para uma maior relativização da impenhorabilidade do bem de família, evitando-se, assim, possíveis fraudes à execução promovidas por devedores, que, por vezes, angariam esforços para adequarem imóveis à condição de bem de família tão somente para obstar a satisfação do crédito existente.

[1] TJSP. Apelação nº 10942-44.02.2017.8.26.0100. Des. Rel. Castro Figliola. 12ª Câmara de Direito Privado. J. 02/09/2020.

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