Na relação negocial com seus clientes ou com os devedores dos direitos creditórios adquiridos, é comum que empresas que atuam no ramo de fomento mercantil ou como agentes de cobrança ou consultoras especializadas de fundos de investimento em direitos creditórios – FIDC, recebam bens móveis em garantia do cumprimento das obrigações estabelecidas, incluindo-se veículos.
Quando, por exemplo, o devedor de uma duplicata pede o parcelamento da dívida, pode oferecer um veículo em garantia do pagamento parcelado; ainda, quando o cedente de um crédito se torna responsável pelo título cedido – inclusive quando o título apresenta vícios de origem –, é comum a assinatura de uma confissão de dívida com o oferecimento de garantia de automóveis.
Nessas situações, a garantia pode ser formalizada por meio de:
(i) Alienação ou Propriedade Fiduciária, com eficácia condicionada ao registro no órgão competente, ou seja, perante o Detran, por meio da plataforma do Sistema Nacional de Gravames (“SNG”) – que, por sua vez, é mantido pela B3 Brasil, Bolsa e Balcão –, conforme art. 1.361 do Código Civil:
“Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.
§1° Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo- se a anotação no certificado de registro”.
ou
(ii) Penhor de Veículos, cujo gravame tem eficácia condicionada ao registro do instrumento público ou particular no Cartório de Títulos e Documentos competente e à anotação no certificado da propriedade, conforme arts. 1.461 e 1.462 do Código Civil:
“Art. 1.461. Podem ser objeto de penhor os veículos empregados em qualquer espécie de transporte ou condução.
Art. 1.462. Constitui-se o penhor, a que se refere o artigo antecedente, mediante instrumento público ou particular, registrado no Cartório de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, e anotado no certificado de propriedade”.
Ou seja, com a inserção da Propriedade Fiduciária no Código Civil, o uso da alienação fiduciária de veículos em garantia passou a ser disponível a qualquer pessoa física ou jurídica, qualquer que seja o objeto social, estando sua eficácia única e exclusivamente condicionada ao seu registro no órgão competente, a exemplo do que ocorre com a alienação fiduciária de imóveis.
Assim, pelo texto da lei, para obter o direito de cadastrar um gravame de Alienação Fiduciária de veículo, a credora não precisa ser, obrigatoriamente, uma instituição financeira ou uma empresa com atuação no comércio de veículos. Qualquer pessoa pode valer-se desse direito.
Pois bem. Para registrar um contrato com cláusula de Penhor ou Alienação Fiduciária e gerar a anotação do respectivo gravame no Certificado de Registro de Veículo, os Órgãos de Trânsito Estaduais, dentre eles o Detran, exigem o prévio cadastramento da credora no sistema competente, nos termos do que dispõe o art. 3º da Portaria Detran nº 1.070/2001:
“Art. 3º . A utilização do SNG impõe, além da adesão ao sistema, a prévia obtenção de código específico de registro perante o Departamento Estadual de Trânsito – DETRAN/ SP, necessário para o processamento e emissão do Certificado de Registro de Veículo – CRV, mediante o integral cumprimento das disposições contidas na Portaria DETRAN n. 640, de 20 de maio de 1999”.
Dessa forma, ao menos em tese, tendo o direito à constituição da garantia fiduciária sido conferido por lei sem nenhuma reserva quanto à figura ou condição do credor, bastaria que a empresa não enquadrada como instituição financeira realizasse o seu cadastramento perante o Detran e, posteriormente, perante a B3 para acessar e utilizar o SNG.
Contudo, na prática, o Detran, apoiando-se em uma norma por ele mesmo editada que restringe o rol de pessoas autorizadas a registrar e constituir alienação fiduciária, tem negado a autorização de cadastro àquelas empresas não enquadradas como instituições financeiras. E, pasme-se, essas negativas têm sido ratificadas pelo Poder Judiciário.
Não nos parece razoável que FIDC e empresas atuantes no setor de antecipação de recebíveis fiquem descobertos, sem constituir nenhum tipo de garantia às suas operações, por uma norma editada pelo próprio Detran em sentido contrário à lei civil.
Assim, diante da desarrazoada recusa do Detran e com o objetivo de resguardar direitos (ainda que de forma oblíqua), a solução indicada para esse percalço é a inclusão de gravame de reserva de domínio perante o Detran – gravame que pode ser facilmente incluído por toda e qualquer pessoa, independentemente de autorização prévia do órgão de trânsito –, ainda que o contrato celebrado entre as partes efetivamente tenha sido o de alienação fiduciária.
Ao menos dessa forma, ficando registrada a garantia da propriedade do bem, será garantido que o proprietário do veículo não desfaça do veículo em prejuízo da credora antes do término das operações de antecipação de recebíveis.
O inconveniente resultado prático dessa opção seria a forma de execução da garantia: enquanto na alienação fiduciária poderia ser feita a excussão extrajudicial do bem (procedimento ágil e simplificado), na reserva de domínio seria necessária a adoção de medida judicial para reaver o veículo em caso de inadimplência do devedor – como uma ação de busca e apreensão ou de execução de título extrajudicial.
Certamente, o registro de reserva de domínio perante o Detran, quando se tem assinado um contrato de alienação fiduciária, não é o procedimento ideal. Mas, diante da recusa do Detran – muitas vezes chancelada pelo Poder Judiciário – e da necessidade de resguardar direitos dos FIDC e empresas não enquadradas como instituições financeiras atuantes no mercado de antecipação de recebíveis, acaba sendo a solução que nos aparenta ser mais viável.
Uma via crucis jurídica, sem dúvida, mas possível e provida de razoável eficácia.
01 outubro, 2024
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26 agosto, 2024
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