Garantia fiduciária de veículos e a Resolução Contran 807

08/07/2021

Por Marsella Medeiros Bernardes

No artigo “Gravame em veículos em garantia é via crucis jurídica, mas possível”, discorremos sobre os entraves administrativos enfrentados por instituições não financeiras para o registro do gravame de alienação fiduciária de veículo perante o departamento de trânsito competente.

Apesar de a lei civil não fazer nenhuma ressalva quanto à qualidade ou condição do credor para fins de constituição de garantia, alguns departamentos estaduais de trânsito, como o Detran-SP, apoiando-se em normas por eles mesmos editadas que restringem o rol de pessoas autorizadas a registrar e constituir alienação fiduciária, têm negado a autorização aos credores não enquadrados como instituição financeira.

Com o objetivo de padronizar os procedimentos operacionais para o registro de contratos com cláusula de alienação fiduciária de veículos automotores, o Conselho Nacional de Trânsito editou a Resolução nº 807, de 15 de dezembro de 2020.

Buscando uma aproximação – ainda tímida, em nossa opinião – com a previsão do art. 1.361 do Código Civil, que dispõe que o uso da alienação fiduciária de veículos é direito disponível a qualquer pessoa física ou jurídica, qualquer que seja o seu objeto social, a Resolução Contran nº 807 estabeleceu expressamente que, além de instituições específicas delimitadas pela norma, instituições não financeiras podem constituir garantia fiduciária:

“Art. 2º. Para fins desta Resolução, considera-se:
(…) VII – instituição credora:
a) instituição financeira, administradora de consórcios ou sociedades de arrendamento mercantil autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil (BCB);
b) Empresa Simples de Crédito (ESC), regida pela Lei Complementar nº 167, de 24 de abril de 2019; ou
c) outras pessoas jurídicas que operem com alienação fiduciária, reserva de domínio ou penhor”.

O Código Civil entrou em vigor em 2002 e não estabeleceu nenhuma restrição a respeito da qualificação do credor. O Contran, quase vinte anos depois, decidiu observar o texto legal e finalmente aceitar a figura de credores não instituições financeiras como beneficiários da garantia fiduciária.

Diante dessa nova previsão regulamentar, alguns Departamentos Estaduais de Trânsito editaram Portarias para adequar os seus procedimentos internos de registro de contratos de garantia real de veículo.

O Detran-RS, por exemplo, editou a Portaria nº 105, de 07 de abril de 2021, e passou a prever expressamente que, além de instituições financeiras e de empresas que atuem com a comercialização de veículos, empresas de factoring são consideradas instituições credoras aptas a constituir garantia fiduciária, conforme art. 3º:

”Art. 3º. Para fins desta Portaria, considera-se como instituição credora:
I – instituição credora, administradora de consórcios ou sociedades de arrendamento mercantil autorizada a funcionar pelo Banco Central do Brasil;
II – Empresa Simples de Crédito (…);
III – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), (…);
IV – outras pessoas jurídicas, à exceção da MEI, cujo objeto social tenha por finalidade a comercialização de veículos automotores e com cláusula de alienação fiduciária, arrendamento mercantil, reserva de domínio ou penhor;
V – empresas de fomento mercantil ou comercial, devidamente cadastradas junto ao COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras”.

O Detran-SP, por sua vez, editou a Portaria nº 76, de 23 de março de 2021.

Mas, em sentido contrário à previsão da Resolução Contran nº 807, foi previsto no seu art. 1º que as normas previstas naquela Portaria teriam como objetivo disciplinar o registro de contratos de financiamento que contassem com garantia real de veículo – limitando o uso da garantia a negócios bancários, em sentido contrário do que prevê a lei civil:

“Art. 1º. Disciplinar os procedimentos previstos na Resolução Contran nº 807/2020, que estabelece normas regulamentares relativas aos procedimentos para o registro de contratos de financiamento com garantia real de veículo, a ser realizado pelo Departamento Estadual de Trânsito – Detran-SP”.

Contudo, diversos outros artigos daquela mesma Portaria mencionam ser possível o registro de “contratos” “por instituições credoras”, de forma genérica e sem fazer nenhuma limitação ou imposição de condição quanto à figura do credor ou ao negócio celebrado pelas partes. A título de exemplo:

“Art. 4º. O registro do apontamento poderá ser realizado diretamente pela instituição credora ou por meio de pessoa jurídica expressamente indicada para esta finalidade”.

“Art. 7º. Os contratos com cláusula de alienação fiduciária celebrados, por instrumento público ou privado, serão obrigatoriamente registrados no Detran-SP por meio de empresa registradora credenciada especialmente para atendimento do que dispõe o §1º do art. 1.361 do Código Civil e o art. 129-B do CTB, nos termos da Resolução Contran nº 807/2020″.

“Art. 8º. As instituições credoras, para fins de registros de contratos, deverão realizar prévio cadastramento junto ao Detran-SP, firmando declaração de ciência e responsabilidade de cumprimento da Resolução Contran nº 807/2020 e desta portaria”.

“Art. 11. O protocolo das informações para o registro dos contratos é obrigação das instituições credoras e será realizado junto ao Detran-SP, a partir das informações por elas enviadas, por meio de empresas registradoras especializadas, para a efetivação do registro e constituição da garantia real”.

A rigor, as Portarias editadas pelos Departamentos de Trânsito do RS e de SP acabaram criando restrições não previstas na norma federal: o Detran-RS, ao prever o rol taxativo das instituições consideradas “credoras” – incluindo, aqui, as empresas de fomento mercantil ou comercial –, acabou por negar aos fundos de investimento em direitos creditórios o direito à constituição de garantia fiduciária; e o Detran-SP, dispondo no seu art. 1º que a Portaria disciplina os procedimentos para o registro de contratos de financiamento, acabou por excluir a formalização da garantia fiduciária aos contratos de cessão de crédito ou de fomento mercantil.

De qualquer forma, as normas infralegais editadas pelos Detrans, a princípio, não possuem força para impedir o direito à constituição de garantia fiduciária. A Resolução Contran nº 807 e o Código Civil são suficientes para embasar o pedido de qualquer instituição credora a registrar os contratos por elas celebrados e constituir gravame de alienação fiduciária em veículos automotores. E eventual negativa, mais que nunca, pode (e deve) ser submetida à apreciação judicial.

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