“Cram down” e abuso de direito de voto nas assembleias de credores

06/09/2021

Por Roberto Caldeira Brant Tomaz

A assembleia geral de credores pode ser considerada um dos atos mais importantes do processo de recuperação judicial, haja vista ser o momento em que os credores reúnem-se coletivamente com o devedor para negociações e para deliberação do Plano de soerguimento, manifestando sua posição por meio de votação.

A depender do resultado da “AGC”, será aprovado o pagamento aos credores na forma prevista no Plano ou, em outro cenário, poderá ser decretada a falência da empresa, tudo conforme o quórum qualificado especificamente previsto na Lei de Falências e Recuperação Judicial.

Diante da extrema importância da votação realizada em AGC, a Lei prevê um mecanismo que autoriza o juiz a conceder a recuperação judicial, isto é, aprovar o plano apresentado pela devedora, mesmo que a decisão da assembleia tenha sido contrária. Trata-se do conhecido “cram down”, que tem por escopo evitar o “abuso de minorias” ou de “posições individualistas”.

Em síntese, esse mecanismo permite que o magistrado, ao realizar o controle de legalidade sobre o resultado assemblear, flexibilize o quórum de votação, aplicando determinados parâmetros objetivos previstos na Lei, para declarar a aprovação do Plano.

Ocorre que, além do cram down, compete aos juízes avaliar qualquer indício de abusividade, analisando individualmente o voto dos credores. Nessa hipótese, o magistrado poderá invalidar determinado voto e isso poderá resultar na aprovação do Plano, o qual, sem a interferência judicial, seria fatalmente reprovado de acordo com a votação anteriormente realizada em AGC que computou voto supostamente abusivo.

Exemplo recente é a decisão proferida pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, que confirmou a homologação do plano de recuperação judicial de uma rede de farmácias aprovado por cram down, afastando o voto de dois credores (Bancos), considerados abusivos. Vejamos a ementa do julgado:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Insurgência contra decisão que aprovou o plano de recuperação das ora agravadas por cram down. Art. 58, §1º, incisos I, II e III, da Lei n.º 11.101/05. Requisitos que devem estar presentes cumulativamente. Hipótese do inciso I somente ocorrerá se desconsiderados os votos das instituições financeiras, detentoras de 61,86% do crédito da classe III, que se manifestaram contrariamente ao plano. Poder decisivo para aprovação do plano, seja em assembleia, seja judicialmente pelos critérios do cram down. Ausência de qualquer negociação por parte da agravante, mesmo após intimação em primeiro grau de jurisdição para manifestação. Indicativo de pretensão falimentar. Abuso de direito. Art. 187 do CC. Elementos constantes dos autos que demonstram a viabilidade econômica das agravadas. DECISÃO AGRAVADA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.” (TJSP; Agravo de Instrumento 2122678-85.2020.8.26.0000; Relator (a): AZUMA NISHI; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Franca – 5ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 24/03/2021; Data de Registro: 25/03/2021)

O desembargador relator Azuma Nishi destacou que, após a votação em AGC, o credor recorrente apresentou petição nos autos da recuperação judicial apenas apontando a ausência de preenchimento de todos os requisitos formais para aprovação do Plano por cram down, não apresentando nenhuma proposta para modificação do Plano.

Aqui é importante tecer algumas considerações.

O plano de recuperação judicial tem natureza de negócio jurídico. Mais precisamente, representa uma nova relação contratual entre o devedor e seus credores, que redundará na novação das dívidas. Sendo um negócio jurídico, rege-se pelo princípio da autonomia privada, de forma que o credor vota de acordo com seus interesses. Assim, qualquer que seja o resultado da apuração da votação do Plano, prevalece a soberania da vontade dos credores.

Contudo, como qualquer direito, o exercício do voto pelo credor tem limites éticos, devendo ser pautado pela cláusula geral de ilicitude contida no art. 187, do Código Civil.

Isso não significa dizer que a simples não justificação do voto pelo credor já caracterizaria abusividade, até porque a Lei não prevê a necessidade de justificativa. No entanto, o direito de voto não pode exceder os limites impostos pelos fins econômicos ou sociais, pela boa-fé ou pelos bons costumes, exatamente como preconiza o referido artigo do Código Civil.

A recente alteração da Lei 13.101/2005 (pela Lei 14.112/2020) introduziu um dispositivo tratando especificamente sobre o abuso de direito de voto, o que antes não havia. Segundo o novo § 6º do artigo 39 da LFRJ, “o voto será exercido pelo credor no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e poderá ser declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem.”

Diversas são as formas em que pode se configurar a abusividade, e isso deve ser analisado no caso concreto. No precedente citado anteriormente, os desembargadores interpretaram que os credores cujos votos foram invalidados vinham adotando uma postura omissa, não se dispondo a nenhum tipo de negociação, pretendendo tão somente a convolação da falência do devedor, o que pôde ser corroborado pelo fato de os créditos gozarem de garantias pessoais dos sócios.

Em casos semelhantes – em que o credor detém um crédito significante, que lhe conferirá um voto decisivo na AGC – se isso for utilizado como um mecanismo de pressão desproporcional, caracteriza-se a abusividade. Nesses casos, vê-se que apenas um credor, ou poucos credores, dominam a deliberação de forma absoluta, suprimindo possível interesse divergente da coletividade de credores.

Como dito, a constatação do voto abusivo pressupõe a apuração das particularidades do caso. Não obstante, a título de ilustração, cita-se o voto pelo credor concorrente que busca a falência do devedor para obter vantagens concorrenciais, e o voto do fabricante que pretende eliminar o intermediário para vender diretamente ao consumidor, como outras hipóteses de configuração de abusividade.

Enfim, o credor tem todo o direito de preferir a falência do devedor, mas se sua intenção for apenas causar dano ao devedor, seus sócios, ou outros – principalmente quando se verificar que as condições propostas no Plano forem melhores do que sua expectativa de recebimento do crédito na falência – o voto deverá ser considerado abusivo.

Fábio Ulhoa Coelho, expoente doutrinador, explica:

“Se a falência do devedor representar para um credor melhor alternativa de satisfação de seu crédito, por exemplo, não se verifica abusividade no voto contrário ao plano de recuperação (se não houver nenhum desvio de finalidade de outra ordem.”[1]

O professor e jurista Marcelo Sacramone complementa:

“Entretanto, as condutas economicamente irracionais por parte dos credores que relutam em aprovar um plano que lhes proporciona mais vantagens do que na falência podem revelar abuso no exercício do direito de voto, haja vista que o credor não tem se orientado pela melhor satisfação financeira, mas pode estar pretendendo interesses outros, que extrapolam a sua posição enquanto credor.”[2]

Em conclusão, temos que os credores na recuperação judicial podem exercer o direto de voto conforme suas convicções pessoais, mas essa discricionariedade não é absoluta, pois deve estar em consonância com os fins econômicos/sociais (no caso, a preservação das atividades da empresa, manutenção dos empregos etc.) e com a boa-fé. Nesse sentido, e, de acordo com a lei aplicável, considera-se abusivo o voto exercido exclusivamente com fins de causar prejuízo ao devedor ou a terceiros e de obter, assim, vantagem ilícita. Vale dizer, somente o voto nesse sentido pode ser declarado nulo.

Na prática, para evitar a anulação do voto, recomenda-se que o credor que detém créditos com poder decisivo antecipe-se, comprovando perante o juízo que tentou negociar melhores condições no Plano com o devedor, mas que não obteve sucesso. Por esses e outros motivos, extrai-se a importante necessidade da atuação técnica por parte do credor na busca do recebimento do seu crédito em recuperação judicial.

 

[1] ULHOA COELHO, Fábio, Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, 14ª ed. – São Paulo: RT – Revista dos Tribunais, 2021, págs. 149-150.

[2] SACRAMONE, Marcelo Barbosa, Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência, 2ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021, pág. 221.

Compartilhe

Vistos, etc.

Newsletter do
Teixeira Fortes Advogados

Vistos, etc.

O boletim Vistos, etc. publica os artigos práticos escritos pelos advogados do Teixeira Fortes em suas áreas de atuação. Se desejar recebê-lo, por favor cadastre-se aqui.