Artigo publicado no caderno Política, Blog Fausto Macedo, do Estadão em 13/12/2021
É incrível como nossa vocação para analisar “caso a caso” temas de grande amplitude, como a aplicação das taxas de juros no Brasil, nos impede de sabermos, até hoje, quais são, afinal, as regras do jogo nessa matéria. Podemos dizer que as discussões vêm de antes de 1933, quando Getúlio Vargas editou o Decreto 22.626, em 07 de Abril daquele ano longínquo, mas não cessaram até os dias de hoje.
É claro que o fenômeno inflacionário, que assolou o País durante décadas, até a primeira metade dos anos 90, quando a equipe do então Ministro Fernando Henrique Cardoso conseguiu implantar no País o Plano Real, e os mecanismos de indexação, criados como um paliativo para aquele problema, impuseram ao País a necessidade de conviver com aparatos intrincados. Como taxas de correção monetária e de juros andam juntas – e a discussão corrente hoje no STJ o confirma, como veremos adiante – lidamos há anos com grande complexidade econômica e jurídica.
Convivemos por décadas com as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN). Mais tarde, veio o Bônus do Tesouro Nacional (BTN), expressando a variação inflacionária calculada pelo Índice de Preços ao Consumidor do IBGE. Tivemos que lidar com regras para exclusão da correção monetária na apuração do imposto sobre na renda; com a obrigatoriedade de correção monetária dos bens do ativo imobilizado das pessoas jurídicas por índices estabelecidos pelo Governo; com a correção monetária mensal dos créditos fiscais, e com tantas outras regras que, por muito tempo, ocuparam o precioso tempo de contadores, juristas e membros do governo. Isso para não falar dos planos econômicos que visaram a estabilização das moedas de suas épocas suas tablitas e quejandos.
Muito embora possamos com facilidade distinguir, na teoria, a correção monetária dos juros – grosso modo, estes são o custo do dinheiro; aquela, apenas um minus que se evita, no tocante ao poder de compra da moeda, e não um plus que se acrescenta – a prática jurídica aplicada aos negócios revela nossa profunda incompetência, enquanto nação, em pacificar regras estáveis capazes de trazer segurança jurídica quanto ao tema das taxas de juros. Fato é que a sociedade brasileira nunca conviveu com regras estáveis, aplicáveis indistintamente a situações indistintas.
As controvérsias continuam até hoje em nossos Tribunais. Se as taxas eram limitadas pelo Decreto 22.626, os bancos estipulavam comissões em seus contratos, o que era causa de contencioso. À ausência de regras firmes e estáveis, além do setor bancário, outros setores buscaram ao longo do tempo contornar a limitação legal dos juros. E seguimos assim, onerando a sociedade e o Estado brasileiro com discussões infinitas.
Em Dezembro de 1963, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 121, vedando a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada. Pouco mais de uma década mais tarde, sobreveio a Súmula 596, anunciando que as disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicavam às taxas de juros e outros encargos cobrados por bancos.
As súmulas de nossa suprema corte, que àquela época tinham alcance meramente persuasivo, jamais pacificaram as contendas acerca dos limites legais para cobranças das taxas de juros e a possibilidade de sua capitalização.
No início dos anos 2000, diversas decisões exaradas pelo STJ buscavam pacificar o entendimento de que a limitação das taxas de juros, estabelecida pelo Decreto 22.626 e pelo Código Civil de 1916, não era aplicável aos bancos, mas que esses não estavam autorizados a capitalizar os juros em períodos inferiores a um ano.
Ou seja, segundo o STJ, seguindo-se as decisões do STF conformadas nas Súmulas 596 e 121, os bancos eram livres para aplicar as taxas de juros que convencionassem com seus devedores, mas era vedado, também a eles, sua capitalização (a cobrança de juros sobre juros, ou anatocismo), em períodos inferiores a um ano, inclusive dos saldos devedores.
Como o entendimento do STJ à época (anterior à reforma processual de 2008) não era cogente, os bancos sempre puderam legalmente refutar sua aplicação, e seguir debatendo no Judiciário. As decisões nas cortes estaduais, de seu turno, tampouco se obrigavam a seguir a orientação do STJ. No Estado de São Paulo, por exemplo, eram comuns decisões contrárias, de modo que os interessados eram instados a levar suas causas ao STJ. Um enorme contencioso, causado por um sistema que se permite julgar caso a caso, pautado no famigerado “livre convencimento”.
As elevadas taxas básicas de juros praticadas durante o período de estabilização econômica dos anos 90 estimularam muito os conflitos nessa seara nos anos seguintes. Os anos 2000 foram, de fato, de grande litigiosidade, problema que o Governo, atuando em favor das instituições financeiras, tentou resolver com a edição da Medida Provisória 1963-17/2000, sucessivamente reeditada até a Medida Provisória 2.170-36/2001. Essa Medida Provisória tornou admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional.
Com a reforma na legislação processual ocorrida em 2008, estabeleceu-se a vinculação das cortes inferiores às decisões do STJ proferidas no sistema de recursos repetitivos. Foi então que o STJ, no julgamento do Recurso Especial 973.827, em 08 de agosto de 2012, definiu ser permitida a capitalização dos juros em períodos inferiores a um ano, exclusivamente nos contratos celebrados após 31/03/2000, data da publicação da Medida Provisória 1.963-17/2000 – e desde que pactuada de forma expressa e clara, segundo o julgado.
No Recurso Extraordinário 592.377, definiu-se a constitucionalidade do artigo 5º da referida Medida Provisória 1.963-17/2000, que estabelecera a regra.
Mas no Brasil nada é muito simples. E as discussões continuam. Atualmente, no Recurso Especial 1795982, o STJ discute se a taxa de juros aplicável aos débitos judiciais deve ser a Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia), ou 1% ao mês mais correção. O cerne dessa discussão reside na aplicação do artigo 406 do Código Civil, segundo o qual os juros, quando não estiverem convencionados, serão fixados pela taxa que estiver em vigor para o pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. Em 2008, a Corte especial entendeu que essa taxa era a Selic, posicionamento que pode vir a ser alterado, sendo possível que o STJ estabeleça uma distinção entre as dívidas de natureza pública e as dívidas civis de particulares.
O resultado desse caso deverá contemplar os precedentes do STJ que, para os casos de responsabilidade extracontratual, determinam a incidência de juros desde a data do fato que gerou o dano (Súmula 54), e a aplicação da correção monetária a partir da decisão condenatória (Súmula 362).
Há ainda uma grande polêmica envolvendo os critérios de juros e correção monetária na seara trabalhista, após recente decisão do STF que, por razões inovadoras, alterou entendimento há anos consolidado.
Olhando em perspectiva, fica claro que, num mundo cada vez mais veloz, que não espera retardatários, estamos indo muito devagar quando se trata de definir regras claras para temas gerais e abstratos, como juros e correção monetária. Tal indefinição centenária fornece incentivos equívocos aos agentes do mercado e lamentavelmente turbinam o custo Brasil.
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