As relações contratuais privadas são regidas pelo princípio da autonomia da vontade e intervenção mínima do Estado, sendo inegável que no meio empresarial a autonomia das partes ganha relevância na elaboração dos contratos sociais – instrumento celebrado para constituir a sociedade empresária, bem como para regular os interesses e responsabilidades dos sócios – e outros atos societários.
A instituição da “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” por meio da Lei n° 13.874/2019, elaborada para tornar o Brasil um país mais competitivo, evidenciou a importância da liberdade dos particulares como garantia no exercício das atividades econômicas, chamando-os, no entanto, à responsabilidade do que contrataram.
Muitas vezes, no entanto, a liberdade de contratar é utilizada pelos particulares com a finalidade de criar instrumentos para limitar as responsabilidades decorrentes das obrigações que contraíram, ou seja, para fazer o que se chama de blindagem patrimonial, visando com isso frustar os direitos dos credores.
É o que se vê, por exemplo, na imposição de cláusula de impenhorabilidade em contrato social, que busca vedar a possibilidade de as penhoras recaírem sobre quotas sociais e/ou lucros por dívidas contraídas pelos sócios da pessoa jurídica.
Atento à artimanha, o Tribunal de Justiça de São Paulo relativizou a restrição imposta pela cláusula de impenhorabilidade em um contrato social, por compreender que as quotas sociais pertencem ao patrimônio do sócio devedor, e, como tal, sujeita-se à penhora, como previsto no artigo 789 do Código de Processo Civil, que dispõe que “O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”.
O acórdão da lavra do Desembargador Elói Estevão Troly, integrante da 15ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, asseverou sobre o alcance da cláusula de impenhorabilidade, que essa tem “restrição válida somente entre os sócios da sociedade, não perante terceiros credores”, in verbis:
Agravo de instrumento. Execução de título extrajudicial. Decisão que rejeitou a impugnação à penhora de quotas sociais de empresa de rádio.
1. Cláusula do contrato social, que dispõe que as quotas sociais são inalienáveis e incaucionáveis, obriga apenas os sócios, mas não os protege da penhora para garantia de crédito de terceiro. Inaplicabilidade do disposto nos arts. 833, inciso I, do CPC, e artigo 1.911 do CC, que se referem a bens recebidos por doação ou testamento.
2. Determinação de apresentação de cópia da autorização, permissão ou regime de exploração da radiodifusão não viola a legislação atinente ao serviço. Documento que o magistrado reputa necessário para a apreciação da questão da penhora sem a ingerência do Poder Executivo, sem decisão alguma sobre a questão. Decisão mantida. Recurso desprovido.
[…]
Afasta-se a alegação de impenhorabilidade das cotas, havendo expressa autorização legal para o ato nos arts. 861 e ss do NCPC, sendo aquela restrição válida somente entre os sócios da sociedade, não perante terceiros credores.
[…]
Aliás, referido permissivo encontra amparo legal no art. 1.026 do CC:
“O credor particular de sócio pode, na insuficiência de outros bens do devedor, fazer recair a execução sobre o que a este couber nos lucros da sociedade, ou na parte que lhe tocar em liquidação”.
[…]
Assim, a cláusula do contrato social que dispõe que as quotas representativas do capital social são inalienáveis e incaucionáveis não tem o alcance pretendido pela executada, pois obriga apenas os sócios a não alienar ou dar as quotas em caução, mas não os protegem da penhora em hipótese como a dos autos, em que garantem o crédito de terceiro.”
O acórdão em comento esclarece que, de acordo com o artigo 1.911 do Código Civil, a cláusula de inalienabilidade – que, por ser mais ampla, implica na impenhorabilidade e incomunicabilidade –, “refere-se às disposições testamentárias”. Para o Desembargador relator do voto, os bens que não se sujeitam à execução são aqueles recebidos por doação ou testamento, ou seja, referidas cláusulas restritivas não beneficiam o devedor que gravou os seus bens com elas, portanto, não podem ser opostas aos credores.
Quando se trata da penhora de quotas e/ou lucros do devedor, é comum a alegação de violação da affectio societatis, isto é, a vedação do ingresso de terceiro alheio aos interesses dos sócios de uma determinada pessoa jurídica, tese que tem sido apresentada, agora, com fundamento na cláusula de impenhorabilidade aposta em contrato social.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, no entanto, ao julgar caso em que o devedor abordou essa tese, não só afastou a aplicação da cláusula de impenhorabilidade em face do credor, como destacou que “[…] o fato de a penhora incidir sobre as quotas sociais não prejudica a affeccio societatis, pois não implica alienação automática, tampouco transferência da administração das empresas”. Vejamos o acórdão de lavra do Des. Jacob Valente :
Agravo de instrumento Ação de execução de título extrajudicial – Insurgência em face de decisão que rejeitou impugnação à penhora formulada pela parte executada, ora recorrente – Alegação de impossibilidade de penhora das quotas que o agravante possui na sociedade Porto da Cruz Participações Ltda., presença do elemento subjetivo da affectio societatis – Improcedência do inconformismo – Possibilidade Inteligência dos arts. 835, IX, 789, 861 e 876, § 7º, todos do
CPC – Inexistência de ofensa à affectio societatis – Precedente – Hipótese de manutenção da decisão hostilizada Recurso desprovido.
Penhora de cotas sociais – Execução que se desenvolve no interesse do credor – Ausência de irregularidade ou abusividade – Cláusula de inalienabilidade (impenhorabilidade) no contrato social Cláusula inoponível a terceiros que não anuíram o contrato social – Interpretação do art. 833, inc. I, do CPC – Possibilidade de constrição pelos credores – Recurso desprovido.
Pretensão de que a execução recaia primeiramente sobre o que ao devedor couber nos lucros e, somente após, caso insuficiente, na parte que lhe couber em liquidação – Pleito não conhecido, posto que não abarcado pela decisão agravada, sob pena de supressão de um grau de jurisdição – Recurso não conhecido nesta parte.
Alegação de que não foi observada a meação de sua esposa – Proteção à meação que deve ser feita pelo cônjuge – Art.18 do CPC – Recurso não conhecido, nessa parte.
Manutenção da decisão hostilizada Recurso conhecido em parte e na parte conhecida desprovido.
[…] as cotas sociais não se encontram incluídas no rol de bens impenhoráveis disposto no art. 833 do Código de Processo Civil.
[…] O art. 833, inc. I, do Código de Processo Civil, que prevê a impenhorabilidade dos bens “inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução”, não subsome-se a hipótese do caso concreto.
O referido pacto de impenhorabilidade está limitado aos sócios que anuíram ao contrato social, não sendo oponível a terceiros que não o convencionaram, especialmente exequentes ou credores dos sócios da empresa.
[…]
Outrossim, importante registrar que, diversamente do que afirma o agravado em suas razões, o fato de a penhora incidir sobre as quotas sociais não prejudica a affeccio societatis, pois não implica alienação automática, tampouco transferência da administração das empresas.”
Os acórdãos destacados do Tribunal de Justiça de São Paulo refletem a tendência do Judiciário de melhor ponderar o direito de o credor satisfazer o seu crédito, dando real efetividade ao disposto no artigo 797 do Código de Processo Civil (“realiza-se a execução no interesse do exequente”), em face do princípio da menor onerosidade do devedor, largamente usado e abusado.
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