Credor fiduciário pode expropriar bens essenciais do devedor em recuperação, desde que não sejam bens de capital

07/06/2022

Por Roberto Caldeira Brant Tomaz

As empresas e empresários em recuperação judicial gozam do benefício legal de manter em seu poder, durante o período de blindagem previsto na lei de regência, os bens de capital essenciais para o exercício de suas atividades. Não obstante, com certa frequência, os devedores se utilizam de medidas judiciais para tentar impedir a prática de atos executórios em face de bens que não se enquadram na regra legal, dentre eles, certas espécies de garantias fiduciárias.

A Lei de Falência e Recuperação de Empresas prevê expressamente que a novação da dívida e a suspensão das execuções movidas contra o devedor não atingem os credores titulares de garantia fiduciária[1]. Sendo assim, eles não estão impedidos de perseguir seus créditos por execução individual, ao contrário do que ocorre com os credores sujeitos ao procedimento concursal (quirografários, titulares de garantia real, etc.). Todavia, há uma limitação: se o bem dado em garantia for um bem de capital e for considerado essencial para o negócio do devedor, a lei proíbe sua retirada do estabelecimento da empresa durante o chamado “stay period”[2], visando impedir a paralização ou o comprometimento da atividade produtiva.

De fato, a essencialidade do bem para o exercício do objeto social da empresa é questão a ser analisada caso a caso, a critério do juízo da recuperação judicial. No entanto, essa verificação não é suficiente, por si só, para impedir a expropriação pelo credor fiduciário, fazendo-se necessário identificar se se trata de bem de capital, por expressa exigência da lei. É daí que surge a importância de definir o termo, a fim de que não se dê interpretação extensiva ao comando legal, comprometendo a segurança jurídica. Nesse sentido, a doutrina e a jurisprudência, com base em conceitos extraídos das ciências econômicas, vêm definindo os bens de capital como sendo os ativos não consumidos no processo produtivo, utilizados como meio de gerar o produto final ou o serviço a ser comercializado pela sociedade empresária.

Assim, pode-se concluir que os bens de capital devem estar na posse direta do devedor, não se enquadrando nesse aspecto, por exemplo, recebíveis e produtos agrícolas dados em garantia, que são bens fungíveis, não havendo que se falar em “retirada” ou “retomada” do bem do estabelecimento do devedor, pois, em última análise, as garantias nunca saíram da posse do credor. Portanto, como se vê, a lei buscou salvaguardar não somente o princípio da preservação da empresa – como alguns devedores querem fazer crer – mas também o direito de propriedade do credor.

Fazendo coro com esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça tem proferido reiteradas decisões considerando que as espécies de garantias citadas acima não são bens de capital e que, portanto, não se enquadram na proibição legal de persecução pelo credor fiduciário.

No recente julgamento do REsp 1.991.989-MA, os ministros do STJ consignaram que “[…] não há razão apta a sustentar a hipótese de que os grãos cultivados e comercializados pelos recorridos (soja e milho) constituam bens de capital, pois, a toda evidência, não se trata de bens utilizados no processo produtivo, mas, sim, do produto final da atividade empresarial por eles desempenhada”.

Já na ocasião do julgamento do REsp 1.629.470-MS, a Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora do caso, assim registrou em seu voto, que foi acompanhado pela maioria: “Reafirmo o meu entendimento de que títulos de crédito dados em alienação fiduciária não podem ser enquadrados, sequer em tese, como bens de capital, por mais ampla que seja a interpretação dada à expressão. A interpretação da lei, qualquer que seja o método adotado, tem como limite a margem possível de significados dos termos nela expressos. Os títulos de crédito, transferidos ao titular da propriedade resolúvel, estão na posse direta e indireta do proprietário fiduciário, o que decorre de expressa previsão legal. Não se pode entender que estejam no ‘estabelecimento do devedor’, sendo utilizados na atividade produtiva.”

Como se vê, em ambos os casos, os julgadores da Corte Superior ratificaram o entendimento de que dinheiro e “commodities” são ativos fungíveis destinados à circulação e que, quando alienados fiduciariamente, passam a não mais estar na posse direta do devedor, não gozando da proteção prevista na lei.

Aqui vale pontuar que não há relevância no fato de os valores provenientes dos direitos creditórios cedidos serem vultuosos ou mesmo necessários para o soerguimento da empresa – argumento muito utilizado pelos devedores na tentativa de fazer incidir, indiscriminadamente, a regra de proibição de “retomada” de bens do ente em recuperação.

Como dito, a essencialidade não é o único critério previsto na lei, cabendo ao juízo – e, naturalmente, ao credor titular – identificarem se o bem em questão se enquadra no conceito de bem de capital, não sendo correto estender a interpretação da lei, irracionalmente, sob o pretexto da preservação da empresa em detrimento da garantia legal positivada em benefício do direito do credor.

 

[1] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
[…]
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

[2] Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:
[…]
§ 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal.

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