Um empecilho recorrente para que credores de alugueres comerciais obtenham a satisfação de seus créditos, malgrado garantidos por caução imobiliária, é a incidência da proteção legal do bem de família, prevista na Lei Federal n° 8.009/90, cujo objetivo é resguardar a dignidade da pessoa humana, a harmonia e a estabilidade familiar.
A despeito da existência de precedentes favoráveis à penhora de bem de família quando se trate de fiança – instituto diverso da caução – a exemplo do quanto explorado no artigo “STF decide que é constitucional a penhora de bem de família do fiador em contratos de locação comercial”, o STJ proferiu decisão recente no sentido de que, em se tratando de caução imobiliária, o bem de família é impenhorável.
Ao reverter decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que havia determinado a penhora de residência ofertada como caução para locação de imóvel comercial em favor de terceiro, o relator, Ministro Marco Buzzi, destacou que não deveria ser aplicado ao caso concreto o mesmo entendimento que versa sobre institutos diversos da caução (fiança, por exemplo), amparando seu voto em decisões anteriores da Corte (REsp 1862925/SC, REsp 1357413/SP, REsp 1561079/DF e REsp 1873594/SP).
Seu entendimento fundamentou-se na opção adotada pelo legislador em prever como hipóteses de exceção à impenhorabilidade do bem de família, constantes no artigo 3° da Lei, as espécies de hipoteca e fiança, sem abordar expressamente o gênero caução:
“Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
(…)
V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
(…)
VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”.
Na visão do Relator, as normas que regem a impenhorabilidade do bem de família, por protegerem direitos fundamentais, devem ser interpretadas de maneira restritiva, o que impossibilita ao julgador determinar sua aplicação sem previsão expressa na lei que o regulamenta. O acórdão destaca, em suma, a impossibilidade de o instituto da caução ser considerado exceção à impenhorabilidade do bem de família por analogia aos institutos da fiança e da hipoteca, estas últimas previstas em lei.
Cumpre destacar que o instituto da caução consiste em garantir uma obrigação, seja por meio de determinado valor depositado ou de um bem dado em garantia. Já a fiança constitui uma garantia pessoal, a qual vincula o fiador a arcar com a obrigação, em caso de dívida.
Embora, no caso em tela, a caução e a fiança constituam espécies advindas do mesmo gênero, qual seja, garantias locatícias, e possuam similaridades capazes de confundi-las, como sua finalidade de gerar uma garantia, transmitindo a falsa impressão de que as regras aplicadas a elas serão iguais, verifica-se que a Lei de Locação (Lei 8.245/1991), em seu artigo 37, disciplinou que a fiança e a caução constituem diferentes modalidades de garantia nos contratos de locação, estabelecendo procedimentos próprios e distintos para cada uma. É o que explicam os doutrinadores que abordam o tema:
“O contrato de fiança consiste em alguém assumir perante o credor a obrigação de pagar a dívida no caso de o devedor não honrá-la. Entre o fiador e o credor nasce um contrato subsidiário, de garantia pessoal de que a dívida de outrem será paga.
(…)
Caução real. Não se pode afirmar que essa caução, ainda que real (porque não fidejussória), seja uma das espécies daquelas tradicionais garantias reais previstas no CC (hipoteca, penhor, anticrese). Isto porque se trata de algo distinto, pois que mero objeto de averbação (LRP 167 II 8) e não de registro, como são as tradicionais (LRP 167 I 2, 4 e 11). Correto que se diga, por isso, que que a caução real de que trata a LI 38 §1° não tenha exatamente natureza jurídica de direito real (tanto que enseja mera averbação); mas correto, também, afirmar que, para ser oponível a terceiro adquirente, há que referida caução ser averbada.” [1]
“Fiança. Trata-se de forma peculiar de contrato, pelo qual um terceiro garante o contrato. Garantia pessoal que é, assegura o cumprimento das obrigações do locatário, o verdadeiro devedor, geralmente por amizade, embora a fiança remunerada esteja presente com certa frequência.
(…)
Por sua vez, quando a lei diz que as garantias locatícias podem constituir-se de caução, fiança e seguro de fiança, está utilizando o termo caução apenas em uma de suas acepções, qual seja a caução real, tanto que dispõe o art. 38 que a caução poderá ser em bens móveis ou imóveis. Constituem-se de cauções quaisquer formas de garantias, reais (penhor, hipoteca e anticrese) ou pessoais (fiança). Porém, deve ser notado que não há necessidade de que se constitua penhor ou hipoteca para perfazer a caução estampada na lei locatícia. Essa caução que assegura o contrato de locação destaca um bem, móvel ou imóvel, para a garantia, sem que existam as formalidades dos direitos reais de garantia típicos. Com a atual lei, que permite caução diversa de dinheiro, há necessidade de melhor regulamentação sobre a matéria. No entanto, devem ser levados em consideração os princípios aplicáveis à caução judicial e à caução legal. Se o bem caucionado é dado em depósito, quer ao locador, quer ao locatário, quer a terceiro, aplicam-se os Princípios do Contrato de Depósito.
Trata-se na lei em exame de formas de caução convencional, negócio jurídico acessório, embora autorizadas por lei. Não se confundem com a caução legal, presente esparsamente no sistema jurídico material, ou com a caução judicial, determinada pelo Juiz no curso de um processo. Em todas elas, porém, a finalidade é a mesma. Essas formas de garantia devem responder pelos aluguéis e encargos da locação, assim como por todas as obrigações emergentes do contrato, até sua efetiva extinção.” [2]
Verifica-se, ainda, que há uma distinção entre a caução que se destina a garantir um contrato de locação e aquela prevista como garantia real na legislação geral, uma vez que a lei que dispõe acerca dos procedimentos pertinentes às locações de imóveis – legislação específica –, estabeleceu para a caução uma formalização diversa daquela prevista no Código Civil. Enquanto os direitos reais sobre imóveis são adquiridos com o registro do título no Cartório de Registro de Imóveis, nos termos do artigo 1.227, do Código Civil, a formalização da caução que visa garantir um contrato de locação se dá apenas pela averbação na matrícula do imóvel dado em garantia, conforme prevê o artigo 38, § 1°, da Lei 8.245/1991.
A uniformização das decisões judiciais e a segurança jurídica reclamam a aplicação de critérios semelhantes no enfrentamento das questões oriundas de garantias locatícias. A previsão de efeitos distintos para fiança e locação parece casuísmo.
No caso aqui discutido, embora a impenhorabilidade não tenha sido reconhecida de plano no julgamento realizado pela Quarta Turma, uma vez que o Relator ponderou que os requisitos necessários para configurar o imóvel como bem de família não foram objeto de análise do Recurso, determinando o retorno dos autos ao Tribunal de Justiça de São Paulo, o recente entendimento afasta a possibilidade de o instituto da caução ser equiparado aos institutos da hipoteca e da fiança, com a finalidade de constituir hipótese de exceção à incidência da proteção legal ao bem de família.
Dessa forma, considerar a caução de bem imóvel como instituto equiparado à fiança consiste em grave erro que pode vir a prejudicar o proprietário do imóvel alugado, impossibilitando que o contrato de locação comercial seja plenamente garantido caso o imóvel dado em garantia se caracterize como bem de família.
Assim, nas hipóteses em que o garantidor do contrato possua apenas um imóvel, utilizado para sua residência permanente, mostra-se fundamental para o mercado imobiliário a adoção de mecanismos de garantia diversos da caução, que sejam efetivamente aptos a assegurar o cumprimento dos contratos de locação comercial.
O acórdão pode ser acessado aqui.
[1] NERY JÚNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Leis Civis Comentadas e Anotadas. 5ª. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019.
[2] SALVO VENOSA, Sílvio. Garantias locatícias. São Paulo: Revista dos Advogados nº 108, 2010, pág. 99.
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