Duplicata com aceite presumido deve ser paga, reconhece o TJSP

15/07/2022

Por Paulo Ernesto Mariano Schwarz

As empresas que atuam no mercado de aquisição de recebíveis estão enfrentando um relevante problema no exercício de suas atividades: a declaração judicial de inexigibilidade de direitos creditórios em razão do desfazimento da relação comercial que deu origem aos créditos.

Essas decisões trazem enorme insegurança jurídica ao mercado de antecipação e compra de direitos creditórios, principalmente quando a empresa adquirente atua de maneira escorreita, com diligência e boa-fé, certificando-se da existência de lastro comercial para a emissão do título, comunicando o respectivo devedor sobre a transferência de titularidade do título e obtendo deste a confirmação da regularidade da operação.

A nosso ver, em situações como essa, em que o próprio devedor confirma ao adquirente do crédito que o negócio existiu e foi concretizado, as alegações sobre o posterior desfazimento do negócio não podem provocar a inexigibilidade do crédito, pois há de reconhecer a ocorrência do chamado “aceite presumido”.

Considerando-se as circunstâncias acima mencionadas, certo é que os títulos de crédito se desvinculam do negócio jurídico de origem, de modo que o devedor não pode opor ao adquirente do crédito (caso das empresas de factoring, por exemplo), portador de boa-fé das cártulas, qualquer de suas exceções pessoais, tal como a devolução da mercadoria (causa subjacente), nos termos do artigo 17 da Lei Uniforme de Genebra (Decreto 57.663/66):

“Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor.”

Recentemente, ao julgar um recurso de apelação interposto por uma empresa de factoring representada pelo Teixeira Fortes, o Tribunal de Justiça de São Paulo reverteu a sentença de 1ª instância que havia declarado a inexigibilidade de duplicatas e condenado a factoring ao pagamento de indenização por danos morais, fundamentando a decisão no “aceite presumido” da devedora do título. Vejamos alguns trechos do acórdão:

“(…) Com efeito, colhe-se dos autos que a coautora Giga BR e a corré Q Drinks entabularam contrato de compra e venda mercantil, tendo por objeto diversos tipos de bebida para revenda. O negócio deu ensejo à emissão de nota fiscal e, no que aqui interessa, ao saque das já mencionadas cártulas (duplicatas n. 12.007, n. 12.047, n. 12.048 e n. 12.049), as quais foram transferidas à corré JN, por meio de contrato de factoring (fls. 468/483).

O endosso translativo se operou em 24.08.2016. Logo em seguida, a faturizadora verificou com a faturizada a realização da compra, tendo comunicado a transferência de titularidade dos respectivos créditos à devedora, que nada opôs à referida transação (fls. 484/495). Ainda, a insurgente tomou a cautela de obter cópia dos canhotos de recebimento das mercadorias correspondentes, contendo a identificação e assinatura de prepostos da adquirente (fls. 496/497).

(…) Assim, a faturizadora JN adquiriu os títulos em questão de boa-fé, depois de tomar as medidas a seu alcance para avaliar a higidez formal das cártulas e certificar-se da causa subjacente. Não consta, por outro lado, que a compradora tenha feito ressalvas ou condicionado a confirmação à verificação da qualidade dos produtos.

Ainda que houvesse eventual notícia de desfazimento superveniente da causa subjacente às cártulas, cumpre registrar que as circunstâncias extraídas dos autos, em especial a prova da entrega dos produtos e o silêncio da compradora, traduziriam aceite presumido.

(…)

É certo que as duplicatas são títulos de crédito representativos de compra e venda mercantil ou prestação de serviço, como destacado em sentença. Porém, o endosso de cártula aceita tem o condão de desligar o crédito do negócio que a ensejou. Como consequência, o endossatário, portador de boa-fé, não fica sujeito às exceções pessoais reservadas ao sacado (art. 17 da Lei Uniforme de Genebra cc. art. 25 da Lei n. 5.474/68).

Tratando da abstração dos títulos de crédito, FÁBIO ULHOA COELHO leciona: “Se o comprador de um bem a prazo emite nota promissória em favor do vendedor e este paga uma sua dívida, perante terceiro, transferindo a este o crédito representado pela nota promissória, em sendo restituído o bem, por vício redibitório, ao vendedor, não se livrará o comprador de honrar o título no seu vencimento junto ao terceiro portador. Deverá, ao contrário, pagá lo e, em seguida, demandar ressarcimento perante o vendedor do negócio frustrado” (Manual de Direito Comercial: Direito de Empresa 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. Págs. 268-269)

Logo, por qualquer ângulo que se analise o caso vertente, forçoso concluir que, perante a terceira de boa-fé, a sacada subsiste obrigada. A segurança jurídica tão cara às relações comerciais se sobrepõe, restando à parte onerada voltar-se contra a sacadora.

(…)

Por esses motivos, os protestos impugnados consubstanciam mero exercício regular de direito, não havendo como a adquirente se eximir da obrigação, ressalvado o direito de regresso em face da vendedora. (…)[1]”

Como se pode notar, no referido julgamento a Corte Paulista concluiu com base na Lei Cambiária e seus princípios que, tendo a factoring agido com boa-fé e diligência, promovendo os atos indicados no início desse artigo, a obrigação de pagar do devedor se manteve intacta, independentemente do desfazimento do negócio que originou o título de crédito.

A mencionada decisão foi importante para o mercado de crédito, mas infelizmente alguns julgadores, inclusive no próprio Tribunal de Justiça de São Paulo, entendem de forma diferente e julgam inexigíveis títulos de créditos com aceite presumido.

De fato, a questão do desfazimento da relação comercial originária à emissão de títulos de crédito ainda é um óbice para a segurança das operações que envolvem aquisição de recebíveis, justamente em razão da existência de divergência nos Tribunais. Contudo, confiamos na pacificação da jurisprudência no sentido de assegurar às empresas do mercado de recebíveis o direito aos créditos com aceite, expresso ou presumido, conforme a legislação e os princípios cambiários.

 

[1] Apelação Cível n° 1117331-21.2016.8.26.0100, Relator(a): Jonize Sacchi de Oliveira, Órgão Julgador: 24ª Câmara de Direito Privado.

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