01/08/2022
A Lei de Falência e Recuperação de Empresas prevê que os credores titulares de garantia fiduciária não estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial do devedor, não concorrendo com os demais credores para o recebimento do seu crédito:
“Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.”
Como o dispositivo legal que exclui os credores fiduciários do procedimento concursal não faz nenhuma ressalva quanto ao valor do bem ofertado em garantia, pode-se afirmar que a natureza extraconcursal abrange a integralidade do crédito fiduciário, diferentemente do que ocorre com os créditos gravados com garantia real, que são assim classificados somente até o limite do valor do bem onerado, conforme expressa previsão legal:
“Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:
II – os créditos gravados com direito real de garantia até o limite do valor do bem gravado;”
O fato de a classificação do crédito com garantia real estar diretamente atrelada ao valor do bem poderia nos induzir à conclusão de que o mesmo raciocínio se aplicaria aos créditos fiduciários. No entanto, há uma sensível diferença prática entre as duas hipóteses que nos impede de concluir dessa forma.
A primeira espécie (crédito com garantia real) está relacionada a um direito real de garantia, no qual o bem de propriedade do devedor é gravado com um ônus, enquanto a segunda espécie (crédito fiduciário) se refere a um direito real em garantia, no qual o credor exerce direito sobre um bem próprio. Neste, há a tradição, isto é, a transferência da propriedade ao credor, sob condição resolutiva (com a expectativa de restabelecer o domínio e a posse direta do bem ao devedor em caso de quitação da dívida), enquanto naquele, o devedor mantém a propriedade do bem.
Essa diferenciação é importante, porque, como o bem gravado com hipoteca, penhor ou anticrese (espécies de garantias reais) integra o patrimônio próprio do devedor, e não é necessariamente liquidado na recuperação judicial, a verificação do seu valor – seja mediante avaliação, seja por identificação no instrumento da dívida – é imprescindível para a delimitação do crédito do titular da garantia real, tanto para fins de voto em assembleia, quanto para o pagamento da classe de credores em que ele está inserido, nos moldes do plano de restruturação eventualmente aprovado:
“Art. 41. A assembleia-geral será composta pelas seguintes classes de credores:
II – titulares de créditos com garantia real;
§ 2º Os titulares de créditos com garantia real votam com a classe prevista no inciso II do caput deste artigo até o limite do valor do bem gravado e com a classe prevista no inciso III do caput deste artigo pelo restante do valor de seu crédito.”
De forma oposta, a verificação do valor do bem objeto de garantia fiduciária não pode ser exigida pelo simples processamento da recuperação judicial, pois, como exposto, ele integra o patrimônio do credor e pode ser excutido em caso de inadimplemento – respeitada a regra de proibição da retomada de bens de capital essenciais às atividades da empresa na vigência do stay period – momento em que o valor do bem corresponderá exatamente ao produto de sua alienação, e eventual saldo remanescente apurado poderá ser habilitado como crédito quirografário na recuperação judicial do devedor.
Se, ao contrário, o bem fosse avaliado no momento do pedido de recuperação judicial, tal como ocorre na garantia real, eventual saldo excedente (valor da dívida menos valor da avaliação) seria habilitado de forma provisória, já que só após a efetiva venda do bem em leilão é que seria possível verificar se, de fato, haveria saldo excedente e qual o valor exato seria arrolado no procedimento concursal. Esse caráter provisório da habilitação de eventual saldo excedente causaria insegurança e poderia dar margem para que o credor potencialmente extraconcursal participasse das deliberações dos credores concursais, interferindo indevidamente no resultado.
Atento ao assunto, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou recentemente dois recursos interpostos por uma empresa em recuperação judicial que tentava submeter créditos fiduciários ao procedimento concursal, sob o fundamento de que os bens ofertados em garantia (ações da própria companhia devedora) não haviam sido avaliados, o que supostamente teria o condão de desnaturar a propriedade fiduciária, e, consequentemente, afastar a aplicação da norma que excetua os créditos sujeitos à recuperação judicial.
Os desembargadores negaram provimento ao recurso da devedora, confirmando a decisão de primeira instância e ratificando o entendimento de que “[…] avaliar a garantia no momento da propositura da recuperação judicial geraria grave insegurança jurídica, pois afastaria a estabilidade do instituto e da relação entre as partes […]” e que “[…] a depreciação das garantias não descaracteriza a natureza do crédito extraconcursal, à luz do art. 49, §3º, da Lei nº 11.101/05, o qual não faz qualquer ressalva quanto à depreciação do objeto da alienação fiduciária. Logo, ainda que haja alteração/ diminuição do valor do bem dado em garantia, isso não torna essa diferença de valor crédito concursal. Somente depois de excutido o bem alienado fiduciariamente, é que se apura o eventual saldo remanescente para posterior habilitação na recuperação como crédito quirografário”[1].
Nesse precedente, fica claro que se o objeto da garantia fiduciária for um bem que, ao tempo do pedido de recuperação judicial, se encontrar momentaneamente desvalorizado em virtude do contexto de crise financeira da empresa devedora, a avaliação obrigatória e imediata poderia trazer um prejuízo ao credor, pois o valor apurado nessa ocasião vincularia eventual expropriação do bem no futuro, num momento em que ele poderia ser vendido a preço maior e o saldo devedor ainda seria incluído para pagamento na forma do plano de recuperação judicial.
O Superior Tribunal de Justiça também já enfrentou o tema na ocasião do julgamento do Conflito de Competência nº 128.194/GO. Naquele caso, os bens alienados fiduciariamente (safra de cana-de-açúcar) já haviam sido objeto de apreensão judicial e adjudicados ao credor com a consolidação da propriedade. Assim, os ministros tiveram que definir a forma de cobrança do saldo remanescente do crédito, tendo em vista que a venda dos bens não fora suficiente para a quitação integral da dívida. Ao final, decidiram por unanimidade que “[…] no caso de alienação fiduciária em garantia, consolidada a propriedade e vendido o bem, o credor fiduciário ficará com o montante arrecadado, desaparecendo a propriedade fiduciária. Eventual saldo devedor apresenta natureza de dívida pessoal, devendo ser habilitado na recuperação judicial ou falência na classe dos credores quirografários”.
Há ainda a questão da cessão fiduciária de direitos creditórios futuros, isto é, de títulos não performados. Como o próprio nome diz, esses títulos ainda não existem no momento em que são ofertados em garantia, logo, não seria possível apurar o seu valor até o momento da efetiva liquidação.
Por todos esses motivos, conclui-se que só é correto falar em “verificação do valor do bem objeto de garantia fiduciária” e em “saldo devedor quirografário” após a excussão do bem, não sendo correto limitar a classificação extraconcursal do crédito com base no valor da garantia, até porque, como demonstrado, a Lei não faz qualquer ressalva a esse respeito e se fizesse, isso não seria compatível com o instituto da propriedade fiduciária. Portanto, o simples fato de o crédito deter uma garantia fiduciária é suficiente para excluí-lo do rito recuperacional, não se fazendo necessária qualquer outra ponderação.
[1] TJSP; Agravo de Instrumento 2281729-35.2020.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 30/03/2022; Data de Registro: 31/03/2022 e TJSP; Agravo de Instrumento 2174315-41.2021.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 30/03/2022; Data de Registro: 31/03/2022
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