Quando uma empresa entra em recuperação judicial, há diversas consequências práticas, sendo a principal e mais conhecida delas a blindagem da devedora contra as ações de execução relativas a créditos sujeitos.
Ao contrário do que se pode pensar, o processamento da recuperação judicial não tem como consequência automática a mudança na gestão da empresa, sendo a regra a manutenção dos administradores na gestão da companhia. Trata-se de previsão expressa na Lei Federal n° 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, a Lei de Recuperação Judicial. O legislador considerou que o empresário, por deter maior conhecimento sobre o próprio negócio, é, ao menos presumivelmente, o profissional mais apto a gerir as atividades da sua empresa. Além disso, há de se reconhecer que, nem sempre, a crise econômico-financeira é consequência de má gestão, a considerar os mais variados fatores externos que podem levar uma empresa a um estado inevitável de iliquidez, transitória ou até definitiva.
Há, no entanto, determinadas situações que podem sim acarretar o afastamento dos administradores – tenham eles participação societária ou não – conforme hipóteses previstas taxativamente no artigo 64 da lei, vejamos:
“Art. 64. Durante o procedimento de recuperação judicial, o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial, sob fiscalização do Comitê, se houver, e do administrador judicial, salvo se qualquer deles:
I – houver sido condenado em sentença penal transitada em julgado por crime cometido em recuperação judicial ou falência anteriores ou por crime contra o patrimônio, a economia popular ou a ordem econômica previstos na legislação vigente;
II – houver indícios veementes de ter cometido crime previsto nesta Lei;
III – houver agido com dolo, simulação ou fraude contra os interesses de seus credores;
IV – houver praticado qualquer das seguintes condutas:
a) efetuar gastos pessoais manifestamente excessivos em relação a sua situação patrimonial;
b) efetuar despesas injustificáveis por sua natureza ou vulto, em relação ao capital ou gênero do negócio, ao movimento das operações e a outras circunstâncias análogas;
c) descapitalizar injustificadamente a empresa ou realizar operações prejudiciais ao seu funcionamento regular;
d) simular ou omitir créditos ao apresentar a relação de que trata o inciso III do caput do art. 51 desta Lei, sem relevante razão de direito ou amparo de decisão judicial;
V – negar-se a prestar informações solicitadas pelo administrador judicial ou pelos demais membros do Comitê;
VI – tiver seu afastamento previsto no plano de recuperação judicial.”
Em suma, o juiz, espontaneamente ou mediante provocação de quaisquer dos envolvidos no processo, poderá determinar o afastamento quando forem observados indícios de que os atuais administradores estão agindo de forma ameaçadora ao resultado da recuperação judicial. Por outro lado, o afastamento pode ocorrer por mera vontade dos credores, se estes entenderem que a medida é necessária e pertinente para o soerguimento da empresa.
Ressalta-se que o afastamento pode se dar pela simples substituição dos administradores na forma prevista nos atos societários, caso o juiz e os credores entendam que a medida é suficiente. Do contrário, e, principalmente, em sendo constatado que a atuação do administrador em exercício reflete a posição dos sócios, será inevitável a convocação de assembleia-geral a fim de que os credores nomeiem um “Gestor Judicial” para assumir a administração.
Diferentemente do Administrador Judicial, que tem, basicamente, a função de acompanhar as atividades da empresa e o cumprimento do plano de recuperação, o Gestor Judicial nomeado assumirá efetivamente o comando da companhia, podendo praticar os atos inerentes, atendendo aos interesse dos credores e também da sociedade empresária.
A lei não exige que o Gestor Judicial tenha experiência prévia em qualquer atividade profissional, nem impõe restrições pessoais, desde que seja indivíduo idôneo. Logo, o Gestor Judicial poderá ser, inclusive, sócio da própria empresa em recuperação, ou credor, ou funcionário, ou qualquer terceiro. Sua nomeação é prerrogativa dos credores.
A figura do Gestor Judicial ganhou destaque recentemente durante o processo de recuperação judicial do Grupo Itapemirim – conhecido grupo empresarial brasileiro do ramo de transportes de passageiros. Em maio de 2022, os credores decidiram afastar a então diretoria e nomear uma empresa de consultoria com experiência no mesmo setor econômico.
O grupo se encontrava em recuperação judicial desde 2016, com dívidas superiores a R$ 250 milhões. Conforme se alegou naquele processo, os então administradores estariam conduzindo as atividades das empresas de forma temerária, desviando recursos, impedindo o acesso a dados de operações e, consequentemente, dificultando o cumprimento do plano de recuperação judicial.
Antes do afastamento da diretoria, a Justiça já havia adotado uma medida excepcional, determinando a atuação de um Watchdog (cão de guarda) – também conhecido como “observador judicial” ou, no meio empresarial, “agente de monitoramento financeiro” – para inspecionar as atividades das empresas do grupo, assegurar a preservação do patrimônio e monitorar o efetivo cumprimento do plano de recuperação judicial. Como o Watchdog não realiza nenhum ato de gestão em relação à companhia e, após sua nomeação, os administradores da empresa continuam ocupando seus cargos, a medida é considerada mais conservadora e objetiva tão somente certificar que a empresa opere dentro da legalidade e de forma responsável.
No caso do Grupo Itapemirim, contudo, diante dos indícios de utilização indevida dos recursos provenientes da venda de ativos, constituição de empresas com integralização de capital de bens das devedoras, inadimplência dos pagamentos dos credores na recuperação judicial, entre outras irregularidades, recorreu-se à medida mais radical, com o afastamento da diretoria e a nomeação de um Gestor Judicial.
Ainda que tenham sido utilizados os meios legais disponíveis para tentativa de soerguimento das empresas, nem a nomeação de um Watchdog nem a intervenção de um Gestor Judicial foram suficientes para contornar o estado falimentar do grupo, que acabou tendo a quebra decretada em setembro de 2022. Alguns consultores e juristas consideram que a participação desses agentes deveria ter ocorrido antes.
Feita a diferenciação entre os possíveis auxiliares do Juízo, cabe pontuar que a figura do Watchdog não está literalmente prevista na Lei de Recuperação Judicial, mas a demanda por esses profissionais vem crescendo, tendo em vista a contribuição que podem oferecer nos processos de restruturação de empresas, não se desconhecendo a necessidade de que a atividade seja objeto de regulação, a fim de se definir com maior acuidade as hipóteses de sua nomeação, suas competências no processo recuperacional e critérios mais técnicos.
Em todo caso, vê-se como acertada a previsão normativa de nomeação de Gestor Judicial em caso de afastamento dos administradores, a fim de assegurar a continuidade da atividade empresarial e o cumprimento do plano de recuperação judicial.
12 dezembro, 2023
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