A contratação de trabalhadores por meio de pessoa jurídica, popularmente conhecida como “pejotização”, foi rechaçada por muito tempo pela Justiça do Trabalho sob o entendimento de que a prática serviria apenas para mascarar as relações de emprego, burlando a legislação trabalhista e tributária.
Todavia, este cenário vem se alterando com o avanço na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) após os entendimentos fixados no julgamento da ADPF 324 e do Tema 725 de repercussão geral, pelos quais a Suprema Corte, analisando as novidades trazidas pela Reforma Trabalhista (Lei 14.467/17) e pela Lei da Terceirização (Lei 13.429/17): (i) declarou constitucional a terceirização de serviços na atividade-meio e na atividade-fim das empresas e (ii) entendeu ser lícita “qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas”.
Para o STF, a “pejotização” não burla a legislação trabalhista se não estiverem presentes os requisitos da relação de emprego.
Nesse sentido, em dois recentes casos, a Justiça do Trabalho de São Paulo negou o vínculo de emprego requerido por médicos contra hospitais e clínicas. Em ambos os processos, os reclamantes foram contratados mediante a assinatura de contrato de sociedade em conta de participação e, de acordo com as sentenças de primeiro grau, prevaleceu o entendimento de que não haveria sido caracterizada a subordinação e a personalidade, alguns dos requisitos indispensáveis para a configuração do vínculo.
Vejamos trechos das decisões:
“…Da conjugação dos art. 2º e 3º da CLT, temos por requisitos essenciais à caracterização da relação de emprego a pessoalidade; a subordinação; a onerosidade; e a não eventualidade. Assim, em resumo, tratando-se de serviço prestado por pessoa física que não se possa fazer substituir (caráter personalíssimo ou intuitu personae), com habitualidade, mediante contraprestação salarial, sob a direção de outrem, tem-se uma relação de emprego.
A Ré em defesa não negou a prestação dos serviços, mas procurou afastar a possibilidade de reconhecimento de vínculo sob a alegação de que a Autora teria prestado seus serviços por meio de sociedade por conta de participação, atuando como sócia participativa.
(…) Em depoimento pessoal, a Autora alega que na época em que trabalhava na 1ª ré, também prestava serviços em outros locais como Pessoa Jurídica.
A testemunha trazida pela Autora declara que se não pudesse dar plantão, avisava e pediam para mandar outro colega da escala que já faz plantão no local, que quando precisou, sempre passou plantões para colegas da escala.
Pois bem, pelo depoimento da testemunha trazida pela Reclamante fica evidente a ausência de pessoalidade, já que poderia haver substituição por outros colegas da escala, demonstrando esse fato o traço característico do profissional liberal, especialmente do médico, que geralmente presta serviços em mais de um local, necessitando de flexibilidade de horários e autonomia.
Dessa forma, eventual violação legal na execução do tipo societário não implica, por si só, o preenchimento dos requisitos para o reconhecimento do vínculo empregatício, porquanto comprovada a ausência de pessoalidade e subordinação necessária para a caracterização do vínculo empregatício.
Registro ainda que o fato de a autora cumprir horários não retira sua autonomia, porquanto demonstra compromisso com a organização do trabalho, a fim de manter uma regularidade do serviço a ser realizado diariamente, principalmente nos dias de plantões, tendo se demonstrado, por meio da prova testemunhal, que era plenamente possível a alteração da dinâmica laboral.
Estando ausentes os requisitos legais ensejadores do vínculo empregatício, julgo improcedente o pedido e os demais dele decorrentes…” (1000026-43.2022.5.02.0320, 10ª Vara do Trabalho de Guarulhos/SP, Juiz Mateus Brandão Pereira, data de publicação: 22/11/2022).
“…Em que pese a configuração de alguns elementos inerentes à relação de emprego, uma vez que há prestação de serviços por pessoa física, com onerosidade e habitualidade, a ausência de subordinação e pessoalidade acabam por afastar o reconhecimento do vínculo de emprego, uma vez que os requisitos previstos no artigo 3º da CLT são cumulativos.
No que tange à subordinação, houve evolução do conceito, culminando com a caracterização da subordinação estrutural, levando para segundo plano as formas tradicionais de subordinação (caracterizadas pelo comparecimento regular no local de trabalho, observância de horários rígidos e cumprimento de ordens diretas).
Analisando o contrato de prestação de serviços acostado às fls. 156 e seguintes dos autos, verifico que houve contratação entre as Reclamadas para prestação de serviços específicos em medicina, mediante repasse de 100% dos valores pagos pelos planos de saúde e pacientes particulares (fls.157).
Ainda que seja considerada a subordinação estrutural como parâmetro, uma vez inserida a atividade exercida pelo Autor no objeto social da Ré “prestar assistência à saúde (…)” (fls.72), a prova dos autos evidencia que o trabalhador exercia suas atividades com autonomia incompatível com o estabelecimento de vínculo de emprego.
Não obstante a prevalência nesta Especializada do contrato realidade, de forma que o Termo de Adesão à Sociedade em Conta de Participação juntado às fls.230 e seguintes não afasta, por si, a relação de emprego nos moldes do artigo 3º da CLT, o Reclamante confirma em depoimento pessoal que não havia punição na hipótese de ausência dos plantões, apenas deixando de receber os respectivos valores, não configurada, portanto, a pessoalidade na prestação de serviços. (…)
Observo que os médicos poderiam selecionar os plantões a serem realizados, demonstrando uma gestão acerca da própria atividade incompatível com a subordinação, podendo eleger períodos de descanso, sendo, portanto, responsáveis pela própria agenda. (…)
Consigno, que embora a qualificação acadêmica do profissional não possa servir de obstáculo a proteção das normas que regem as relações laborais, é notório e comum entre esses profissionais o trabalho autônomo, inclusive em razão da possibilidade de auferirem maiores rendimentos, prestando serviços mediante credenciamento a diversas instituições hospitalares, com total autonomia acerca de suas escalas e técnicas de trabalho, ficando, portanto, afastada a subordinação.
Desta forma, e considerando não estarem presentes todos os requisitos dispostos no artigo 3° da CLT, concluo pela improcedência concernente ao reconhecimento do vínculo com a 1ª Ré…” (1000396-91.2022.5.02.0006, 6ª Vara do Trabalho de São Paulo/SP, Juíza Cláudia Tejeda Costa, data de publicação: 28/11/2022).
Outros profissionais da área da saúde também tiveram o vínculo de emprego negado pela Justiça do Trabalho dada a ausência de comprovação dos requisitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), conforme demonstram os trechos extraídos de um acórdão proferido pela 5ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP), que manteve a improcedência da Reclamação Trabalhista movida por fisioterapeuta contra um hospital:
“… E de acordo com os demais elementos constantes do caderno processual a reclamante (Fisioterapeuta) integrou livremente o quadro social da empresa N. SERVIÇOS ESPECIALIZADOS E CONSULTORIA EM FISIOTERAPIA que por sua vez presta serviços à terceira reclamada – SOCIEDADE BENEFICIENTE S. C. – HOSPITAL S. C. (ID. ecc48d9 – Pág. 1, ID. 28580c8).
Constata-se, ainda que a demandante poderia ajustar a prestação de serviços de acordo com sua conveniência, trocar/negociar plantões (ID. 9269319 – Pág. 1 e seguintes), sem qualquer penalidade, afora não receber pelo serviço, restando afastada a pessoalidade no fornecimento de sua mão de obra, bem como dependência econômica.
Ora, o fato de a autora recursar trabalho, a seu critério, sem nenhuma punição e, ainda, indicando uma pessoa para substituí-la, são situações inimagináveis num contrato de trabalho.
A documentação encartada revela, ainda, que a reclamante era convocada para participar de Assembleias (ID. 4f9ea61 – Pág. 4 e seguintes) com direito a voto decidindo acerca dos rumos financeiros/administrativos da empresa a qual compunha o quadro societário e recebia participação nos lucros, restando configurada a “affectio societatis”.
Não suficiente, ausente prova da existência de subordinação da reclamante à terceira reclamada HOSPITAL S. C., não se podendo chegar a conclusão diversa pelo uso de crachá do Hospital ou mesmo jaleco/avental – uniforme, pois sendo responsabilidade da terceira ré a segurança física e patrimonial em suas instalações, exigir o uso de identificação em suas dependências e material esterilizado não atribui à prática qualquer traço de subordinação. (…)
Por fim, tratando-se de prestação de serviços de fisioterapia dentro de ambiente hospitalar, nada mais aceitável, por não óbvio, que o corpo médico (e se sabe que é prática estes profissionais não serem vinculados aos estabelecimentos hospitalares por meio de vínculo empregatício) indique a necessidade ou não da presença do profissional de fisioterapia, tratamento e demais prescrições aos pacientes, circunstância que não configura ordens para caracterização de contrato de trabalho, nos termos celetista.
A corroborar com as conclusões da instância primígena, que também é compartilhada por esta Relatora, o documento colacionado no ID. 566188e, relatório apresentado pelo Auditor do Trabalho após fiscalização realizada nas dependências da terceira reclamada, com a finalidade de constatar as irregularidades apontadas por denúncia, do Conselho Regional de Fisioterapia Ocupacional, não confirmada, esclareço.
Remanesce claro, portanto, que entre as partes não existiam todos os elementos que, somente em conjunto, caracterizariam o vínculo de emprego, especialmente, pessoalidade e subordinação (art. 3º, CLT)…” (1000292-97.2019.5.02.0073, 5ª Turma, Relatora Patrícia Cokeli Seller, data de publicação: 02/03/2021).
Os precedentes acima não indicam a impossibilidade do reconhecimento do vínculo empregatício pelos profissionais da saúde. Cada caso concreto deve ser analisado de acordo com as suas peculiaridades pois, nos termos do artigo 3º da CLT, para que se caracterize a relação de emprego é necessária a comprovação concomitante da pessoalidade, da não eventualidade, da onerosidade e da subordinação jurídica. Nossa experiência mostra que em muitas situações, ou esses requisitos não são preenchidos ou não são provados no processo.
12 setembro, 2024
21 março, 2024
O boletim Vistos, etc. publica os artigos práticos escritos pelos advogados do Teixeira Fortes em suas áreas de atuação. Se desejar recebê-lo, por favor cadastre-se aqui.