13/03/2023
A uniformidade, a estabilidade, a integridade e a coerência da jurisprudência constituem o alicerce do sistema de precedentes no processo civil brasileiro. O Artigo 926, do Código de Processo Civil, determina que é dever dos tribunais uniformizar a sua jurisprudência. No dizer de Fredie Didier, “o dever de uniformizar pressupõe que o tribunal não possa ser omisso diante de divergência interna, entre seus órgãos fracionários, sobre a mesma questão jurídica” [1].
Quando o assunto é recuperação judicial e o tratamento da cessão fiduciária de recebíveis em garantia de operações financeiras ou negociais, não performados até a data do pedido de recuperação judicial, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deixa a discussão em aberto já há alguns anos. Discute-se, especialmente, se créditos decorrentes deste tipo de operação estão sujeitos, ou não, à recuperação judicial.
Em levantamento realizado por pesquisa conduzida pelo Teixeira Fortes Advogados foram analisadas 30 decisões proferidas entre os anos de 2014 e 2022 [2] a respeito deste assunto, e se observou que as 1ª e 2ª Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP (responsáveis por julgar recursos em recuperação judicial) mantém um placar bastante apertado:
Ano | Desfavorável | Favorável | Total |
---|---|---|---|
2014 | - | 2 | 2 |
2015 | 3 | 1 | 4 |
2016 | - | 3 | 3 |
2018 | 3 | 2 | 5 |
2019 | 2 | 1 | 3 |
2020 | 1 | - | 1 |
2021 | 1 | 4 | 5 |
2022 | 4 | 3 | 7 |
Total | 14 | 16 | 30 |
Neste universo de decisões analisadas, em 16 ocasiões, decidiu-se que estes créditos não estão sujeitos ao processo de recuperação, enquanto em 14 adotou-se conclusão no sentido contrário, para sujeitar os créditos ao plano de reestruturação econômico-financeira do devedor.
Mesmo dentro das próprias Câmaras Reservadas de Direito Empresarial não existe consenso. A pesquisa constatou que, no caso da 1ª Câmara, cerca de 65% das decisões excluem o crédito do processo recuperacional. Na 2ª Câmara, este cenário foi observado em aproximadamente 38% das decisões. Consideradas todas as decisões avaliadas, também se verificou que 26% não são unânimes:
Câmara | Desfavorável | Favorável | Total |
---|---|---|---|
1ª CRDE | 6 | 11 | 17 |
2ª CRDE | 8 | 5 | 13 |
Total | 14 | 16 | 30 |
Dentre as decisões que determinam a sujeição do crédito ao plano de recuperação, encontram-se fundamentos no sentido de que por não existirem os recebíveis ao tempo do negócio, o devedor não tinha a livre disposição sobre eles, “o que tornava inválida a garantia constituída” [3]; de que o credor assumiu a “álea de eventual frustração dos recebíveis” [4], fator que se leva em conta no equacionamento do contrato; e de que a “a garantia constituída pressupõe a possibilidade de sua efetiva constituição” [5] .
Já no caso das decisões que excluem da recuperação o crédito garantido por recebíveis não performados até a data do pedido de recuperação, constatam-se fundamentos segundo os quais “negar a validade dessa garantia importa em assumir sério risco de fraude” [6]; o suprimento da necessidade de capital do devedor “não pode ser feito mediante o esvaziamento ou extinção dos direitos creditórios objeto de garantia fiduciária” [7]; e a desqualificação desta garantia “desgasta a relação de confiança, provocando insegurança jurídica e desestimula novas estruturações de garantias, além de encarecer o custo do crédito” [8].
Em um contexto no qual o mercado avalia que os pedidos de recuperação judicial tendem a aumentar [9] , é de extrema relevância que divergências como esta recebam tratamento adequado e sejam pacificadas o quanto antes.
No caso específico da cessão fiduciária de recebíveis não performados na data do pedido de recuperação judicial, permanece disputada a divergência, ainda que o Superior Tribunal de Justiça já tenha decidido que não há “diferença entre créditos a serem performados após a decisão de processamento da recuperação judicial e aqueles já performados até aquele marco temporal” [10], respeitado o entendimento de que a plena constituição da propriedade fiduciária se dá com a contratação.
Como se disse antes, é dever dos Tribunais brasileiros pacificar a jurisprudência e manter sua coesão. No caso do Artigo 926, §1º, do Código de Processo Civil, impõe-se aos Tribunais a edição de súmulas correspondentes à jurisprudência dominante, o que não é o caso.
Nesta hipótese, pode ser o caso de instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas referido no Artigo 976, do Código de Processo Civil, situação que exige a efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito e risco de ofensa à isonomia e segurança jurídica, requisitos presentes neste debate.
Ainda outro instrumento processual disponível para resolver esta divergência é o incidente de assunção de competência, caso se entenda que não existe efetiva multiplicidade e repetição de processos relativos ao mesmo tema, mas que há repercussão social, conforme o Artigo 947, também do Código de Processo Civil.
No âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Artigo 190 do seu Regimento Interno cuida da uniformização da jurisprudência e, além das súmulas, refere também aos enunciados de jurisprudência pacificada, que devem ser aprovados pelos Grupos de Câmaras, como é o caso dos órgãos julgadores referidos nesta pesquisa.
Como se vê, estão disponíveis ao Tribunal de São Paulo e à comunidade jurídica nele atuante diferentes instrumentos processuais capazes de solucionar definitivamente a controvérsia em questão. É necessário adotar, com brevidade, as medidas capazes de propiciar isonomia e segurança jurídica aos credores das empresas em recuperação.
[1] DIDIER, Fredie. Sistema brasileiro de precedentes judiciais obrigatórios e os deveres institucionais dos tribunais: uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência. In: LEITE, George Salomão [et al]. Crise dos Poderes da República: judiciário, legislativo e executivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. Livro eletrônico.
[2] Acórdãos proferidos nos seguintes processos da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial: Agravos de Instrumento n.ºs 2021503-92.2013.8.26.0000, j. em 06/02/2014; 2066263-29.2013.8.26.0000, j. em 29/05/2014; 2227540-20.2014.8.26.0000, j. em 24/06/2015; 2096700-82.2015.8.26.0000, j. em 24/06/2015; 2138995-37.2015.8.26.0000, j. em 16/11/2015; 2009241-08.2016.8.26.0000, j. em 13/07/2016; 2094785-61.2016.8.26.0000, j. em 19/10/2016; 2039025-59.2018.8.26.0000, j. em 04/07/2018; 2075478-53.2018.8.26.0000, j. em 04/07/2018; 2132786-47.2018.8.26.0000, j. em 19/09/2018; 2138681-86.2018.8.26.0000, j. em 12/12/2018; 2047748-33.2019.8.26.0000, j. em 24/09/2019; 2233304-74.2020.8.26.0000, j. em 17/03/2021; 2235217-91.2020.8.26.0000, j. em 17/03/2021; 2039418-76.2021.8.26.0000, j. em 26/05/2021; 2266927-95.2021.8.26.0000, j. em 03/05/2022; 2295554-12.2021.8.26.0000, j. em 16/08/2022. Acórdãos proferidos em processos da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial: 2029505-80.2015.8.26.0000, j. em 11/11/2015; 2207934-69.2015.8.26.0000, j. em 14/03/2016; 2088366-54.2018.8.26.0000, j. em 24/07/2018; 2087570-29.2019.8.26.0000, j. em 29/10/2019; 2078778-23.2018.8.26.0000, j. em 26/11/2019; 2252486-17.2018.8.26.0000, j. em 24/08/2020; 2201239-26.2020.8.26.0000, j. em 09/04/2021; 2199372-95.2020.8.26.0000, j. em 24/06/2021; 2191193-41.2021.8.26.0000, j. em 01/06/2022; 2137944-78.2021.8.26.0000, j. em 01/06/2022; 2017363-34.2021.8.26.0000, j. em 08/06/2022; 2005901-46.2022.8.26.0000, j. em 14/06/2022; 2181324-20.2022.8.26.0000, j. em 12/12/2022.
[3] Agravo de Instrumento n.º 2029505-80.2015.8.26.0000, Rel. Des. Carlos Alberto Garbi.
[4] Agravo de Instrumento n. º 2096700-82.2015.8.26.0000, Rel. Des. Pereira Calças.
[5] Agravo de Instrumento n.º 2295554-12.2021.8.26.0000, Rel. Fortes Barbosa.
[6] Agravo de Instrumento n.º 2207934-69.2015.8.26.0000, Rel. Des. Carlos Alberto Garbi.
[7] Agravo de Instrumento n.º 2094785-61.2016.8.26.0000, Francisco Loureiro.
[8] Agravo de Instrumento n.º 2108970-65.2020.8.26.0000, Azuma Nishi.
[10] STJ, AgInt no REsp 1.932.780/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, DJe 02/12/2021.
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