O Código Municipal de Defesa do Consumidor foi criado pela Lei nº 17.019/2019, com o objetivo de estabelecer normas de proteção e defesa do consumidor na cidade de São Paulo.
Todavia, desde sua promulgação, passou a receber críticas por conter disposições inconstitucionais, que extrapolam a competência legislativa do Município.
A questão foi agora apreciada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que declarou a inconstitucionalidade do Código (com exceção de seu Capítulo III, artigos 10, 11, 12, 13 e 14), ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica – ABINEE [1].
Ações semelhantes, ajuizadas pela FECOMÉRCIO/SP [2] e pela Associação das Operadoras de Celulares – ACEL, em conjunto com a ABRAFIX – Associação Brasileira de Concessionárias de Serviço Telefônico Fixo Comutado [3], tiveram decisões semelhantes, pelos mesmos fundamentos.
A inconstitucionalidade da Lei foi reconhecida pelo Tribunal de Justiça, que entendeu que a legislação municipal não pode criar obrigações que ultrapassem o âmbito de sua competência, invadindo a esfera de competência da União ou do Estado. Como destacado na decisão e conforme o art. 30, II, da Constituição Federal, cabe aos Municípios suplementar a legislação federal ou estadual “no que couber”. Assim, entendeu o TJ que cabe aos Municípios, pelo princípio da preponderância, legislar sobre assunto de interesse local. E, nas palavras de Hely Lopes Meirelles, citado na decisão, “O que define e caracteriza o ‘interesse local’, inscrito como dogma constitucional, é a predominância do interesse do Município sobre o do Estado ou da União” (Direito Municipal Brasileiro, 16ª edição, pp. 133/136).
O TJSP entendeu que o Código Paulistano invade matérias de competência legislativa concorrente da União, Estados e Distrito Federal, quando aos Municípios caberia suplementar a legislação “para atender as suas peculiaridades”. Em outras palavras, caberia ao Município legislar apenas sobre questões consumeristas particulares da cidade de São Paulo e não sobre questões gerais, já abarcadas pelo Código de Defesa do Consumidor.
Destacou o Tribunal que a Lei em questão não dispõe sobre nenhum interesse local, com exceção das regras contidas no Capítulo III, que trata do PROCON Municipal. Para justificar esse ponto, o TJSP comparou o Código Paulistano com o Código do Município do Rio de Janeiro (Lei nº 7.023/21, também declarada inconstitucional) e demonstrou que ambos os textos são idênticos, o que evidencia que a Lei nº 17.019/2019 não versa sobre interesses locais. Afirmou: “Como se percebe, com exceção do Capítulo III e de menções a São Paulo/paulistano e Rio de Janeiro/carioca, as leis são praticamente idênticas. E se o interesse local do Município de São Paulo é essencialmente igual ao interesse local do Município do Rio de Janeiro, então não se tem interesse local, aqui ou acolá, nem tampouco regional, mas interesse nacional, por transcender as divisas dos Estados. Inadmissível, pois, a edição de lei municipal com base na competência legislativa suplementar dos Municípios (art. 30, II, CF).”
Nesse aspecto, é inconstitucional a lei paulistana, por versar sobre normas gerais de defesa do consumidor, extrapolando a sua competência.
Também asseverou o Tribunal que “Não é o fato de a lei municipal ser pior ou melhor, mais ou menos restritiva do que as normas federais ou estaduais vigentes que torna o Município competente para legislar sobre o tema. A competência legislativa exige uma análise prévia à do teor das disposições impugnadas, porque, afinal, a entidade política incompetente não pode editar leis válidas, por mais que sejam bem-intencionadas, quaisquer que seja o seu teor”.
Destaquem-se aqui as principais práticas abusivas contidas no Código Paulistano e agora declaradas inconstitucionais: (i) a exigência de caução para atendimento médico-hospitalar; (ii) o não fornecimento de cópia contratual, por meio físico ou digital, antes da manifestação de anuência do consumidor; (iii) a transferência ao consumidor do ônus do custo da cobrança nos boletos bancários; (iv) o estabelecimento de limites quantitativos na venda dos produtos ofertados; (v) a oferta de produtos e serviços sem o preço individual no anúncio; (vi) o corte de serviço essencial na véspera de final de semana e feriados; (vii) a não disponibilização de atendimento direto ao consumidor no Município; (viii) a retenção do original da nota fiscal do produto na assistência técnica; (ix) a demora superior a 5 (cinco) dias úteis para a retirada do nome dos consumidores inadimplentes do SPC e Serasa, após quitação de débitos; (x) a manutenção do nome do consumidor nos cadastros de restrição ao crédito no caso de renegociação da dívida, em prazo superior a 5 (cinco) dias úteis, contados desde a data da assinatura pelas partes; (xi) a cobrança de consumação mínima ou obrigatória nos bares, restaurantes e casas noturnas; (xii) a não afixação em bares e restaurantes dos preços de serviços e produtos oferecidos ao consumidor; (xiii) a oferta publicitária que não informa sobre o prazo para entrega de mercadorias; (xiv) o oferecimento de balas ou outros produtos para complementar o troco; (xv) a eximição de responsabilidade do fornecedor nos casos de furto ou qualquer dano constatado nos veículos estacionados em áreas preservadas para este fim, em seu estabelecimento.
Destaque-se ainda, no âmbito contratual, que o Código Paulistano considera abusivas as cláusulas contratuais que: (i) elejam foro para dirimir conflitos decorrentes das relações de consumo diverso daquele onde reside o consumidor; (ii) imponham, em caso de impontualidade, a interrupção de serviço essencial, sem aviso prévio, com prazo inferior a 15 (quinze) dias; (iii) não restabeleçam integralmente os direitos do consumidor a partir da purgação da mora; (iv) impeçam o consumidor de se beneficiar do evento do termo de garantia contratual que lhe seja mais favorável; (v) atribuam ao fornecedor o poder de escolha entre múltiplos índices de reajuste, entre os admitidos legalmente; (vi) imponham limite ao tempo de internação hospitalar não prescrito pelo médico; (vii) estabeleçam, nos contratos de prestação de serviços educacionais, a vinculação à aquisição de outros produtos ou serviços; (viii) subtraiam ao consumidor, nos contratos de seguro, o recebimento de valor inferior ao contratado na apólice; (ix) estabeleçam restrições ao direito do consumidor de questionar, nas esferas administrativa e judicial, possíveis lesões decorrentes de contrato por ele assinado; (x) autorizem, em virtude de inadimplemento, o não fornecimento ao consumidor de informações de posse do fornecedor, tais como: histórico escolar, registros médicos e demais do gênero; (xi) prevejam, nos contratos de seguro de automóvel, o ressarcimento pelo valor de mercado, se inferior ao previsto no contrato; (xii) autorizem o envio do nome do consumidor ou seus garantes a banco de dados e cadastros de consumidores, sem notificação prévia por envio de carta simples e por meio eletrônico; (xiii) obriguem o consumidor, nos contratos de adesão, a manifestar-se sobre a transferência, onerosa ou não, para terceiros, dos dados cadastrais confiados ao fornecedor, sem observância da Lei nº 13.709/18; (xiv) autorizem o fornecedor a investigar a vida privada do consumidor, de forma contrária à legislação pátria.
No entanto, há que se ponderar que a Lei nº 17.109/2019 foi declarada inconstitucional (com exceção do Capítulo III, que dispõe sobre o PROCON Municipal, como já dito), por ausência de competência legislativa do Município para legislar sobre a grande maioria dos dispositivos nela contidos.
Isso não quer dizer que o Poder Judiciário tenha endossado as práticas abusivas ali elencadas, absolutamente. Tais posturas, a partir da declaração de inconstitucionalidade da lei, deverão ser analisadas à luz da legislação já em vigor, especialmente a Lei nº 8.078/90, que dispõe exaustivamente sobre os direitos do consumidor, as cláusulas e práticas consideradas abusivas e suas respectivas sanções.
Contra as decisões proferidas, ainda cabe a interposição de recurso às instâncias superiores.
[1] TJSP. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2260724-88.2019.8.26.0000. Rel. Designado Décio Notarangeli. Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Data do Julgamento: 15/03/2023. Data da Publicação: 11/04/2023;
[2] TJSP. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2188592-33.2019.8.26.0000. Rel. Designado Décio Notarangeli. Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Data do Julgamento: 15/03/2023. Data da Publicação: 11/04/2023;
[3] TJSP. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2152348-37.2021.8.26.0000. Rel. Designado Décio Notarangeli. Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Data do Julgamento: 15/03/2023. Data da Publicação: 04/04/2023.
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