Devolução de mercadorias não impede a cobrança de duplicatas aceitas

03/05/2023

Por Leticia Nunes dos Santos

Nas operações de antecipação de recebíveis envolvendo duplicatas mercantis ou de prestação de serviços, o crédito é transmitido ao adquirente – companhia securitizadora, empresa de factoring ou fundo de investimento em direitos creditórios – por meio de endosso, na forma da legislação cambiária. Ou seja, o crédito é cedido por meio da simples transferência do título assinado pelo endossante ao terceiro (endossatário).

Dessa forma, em atenção ao princípio da cartularidade, para que a transferência do crédito seja considerada válida, o endossatário deve comprovar que se encontra na posse do título que representa o crédito cedido para que possa exercer o direito de cobrança.

Assim, a comunicação da cessão do crédito ao devedor do título (o sacado) não é condição de validade da transmissão do título, conforme reconhecido recentemente em decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE EXECUÇÃO – DUPLICATAS MERCANTIS – REALIZAÇÃO DE ENDOSSO – NOTIFICAÇÃO DO DEVEDOR – DESNECESSIDADE – PAGAMENTO DO DÉBITO AO CREDOR ORIGINÁRIO – AUSÊNCIA DE QUITAÇÃO. Comprovada a existência de negócio jurídico entre as partes e a entrega dos produtos adquiridos pela parte devedora, incontestável é a existência da dívida insculpida nas duplicatas objeto da ação. Tendo sido o título transferido a terceiro por meio de endosso, não há que se falar em sua invalidade diante da ausência de notificação prévia do devedor, eis que tal exigência somente se aplica às cessões de crédito. Evidenciada a transferência das duplicatas pela ré/credora originária ao fundo de investimentos autor por meio de endosso, a ausência de pagamento da dívida ao credor, portador dos títulos protestados, implica no reconhecimento da regularidade da demanda executiva neles embasada.” [1]

Não obstante a dispensabilidade da notificação ao devedor para a validade da cessão, é recomendável a comunicação da realização do endosso ao sacado com o objetivo de comprovar a existência de aceite do título.

A comprovação de aceite do título visa resguardar o direito de recebimento do crédito pelo endossatário nos casos em que houver a posterior alegação do sacado de que o negócio jurídico subjacente não teria sido performado (por não recebimento das mercadorias inicialmente adquiridas ou por devolução das mercadorias em razão de vícios/defeitos) e, até mesmo, evitar ações fraudulentas, recorrentes nos últimos tempos (negócio subjacente performado e alegação de não recebimento ou devolução das mercadorias).

Dessa forma, após o envio da notificação, são possíveis os seguintes cenários:

i) resposta do sacado à notificação manifestando expressamente seu aceite ou sua ciência sobre a cessão do crédito, sem apresentar objeções de nenhuma natureza, caso em que o aceite é inequívoco;

ii) resposta do sacado à notificação apresentando objeções quanto ao crédito cedido, seja por ausência do recebimento da mercadoria ou por sua devolução, caso em que a recomendação é o não prosseguimento da operação;

iii) ausência de resposta do sacado, seja para manifestar expressamente o aceite ou apresentar objeções, hipótese em que, decorridos 10 dias da notificação da cessão, restará configurado o aceite presumido.

A caracterização do aceite presumido se dá pela aplicação do disposto no artigo 7° da Lei n° 5.474/68 (Lei das Duplicatas), que dispõe:

“Art. 7º A duplicata, quando não for à vista, deverá ser devolvida pelo comprador ao apresentante dentro do prazo de 10 (dez) dias, contado da data de sua apresentação, devidamente assinada ou acompanhada de declaração, por escrito, contendo as razões da falta do aceite.”

Nos casos em que houver o aceite, seja ele expresso ou presumido, a posterior alegação de devolução ou vício da mercadoria passam a ser inoponíveis ao endossatário, restando ao sacado o direito de regresso em relação ao endossante.

Em recente julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi reconhecido o aceite de duplicata e mantido o direito de cobrança do sacado, mesmo com a posterior e intempestiva alegação de devolução das mercadorias:

“Ação declaratória – inexigibilidade de débito – duplicatas mercantis – cessão de crédito – aceite devidamente comprovado – inexistência de prova dos defeitos da mercadoria – devolução realizada após o prazo legal – arts. 7º e 8º da Lei nº 5.474/68 – descabimento de oposição de exceções pessoais – art. 916 do Código Civil – endossatária de boa-fé – ação julgada improcedente – sentença mantida – recurso improvido.” [2]

No caso específico, o endosso foi comunicado ao sacado que apenas manifestou sua ciência a respeito da cessão, sem apresentar nenhuma objeção. Mais de 30 (trinta) dias depois, o sacado comunicou que teria devolvido as mercadorias (bobinas de aço) ao cedente (indústria metalúrgica), alegando defeitos ocultos. Mas a atenta turma julgadora observou que “a partir do aceite das duplicatas, esta se torna título abstrato, desvinculando-se do negócio originário, não sendo mais exigível a prova da existência do negócio jurídico subjacente, nem da entrega das mercadorias ou do recebimento dos serviços prestados, para fins de cobrança”, mantendo a sentença de primeiro grau que acolheu a tese da securitizadora, assegurando-lhe o direito de cobrar o sacado.

Sobre a devolução de mercadorias, a propósito, recomendamos a leitura do artigo “Devolução de mercadorias e os reflexos em operações de antecipação”, de autoria do advogado Marcelo Augusto de Barros.

[1] TJMG; Apelação Cível 1.0000.21.025453-8/004, Relator: Des. Arnaldo Maciel, 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 07/02/2023, publicação da súmula em 07/02/2023.

[2] TJSP; Apelação Cível 1006184-25.2021.8.26.0161; Relator: Coutinho de Arruda; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Privado; Foro de Diadema – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/02/2023; Data de Registro: 28/02/2023.

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