A alienação fiduciária de bens imóveis – mecanismo garantidor amplamente utilizado em operações de crédito – tem suscitado debates quanto à sua aplicabilidade a diferentes naturezas de créditos, sobretudo quando se fala em créditos rotativos e futuros.
Embora a legislação que trata dessa modalidade de garantia não tenha estabelecido limitações específicas quanto à natureza temporal do crédito fiduciário, na prática registral e jurídica, os financiadores usualmente enfrentam questionamentos que podem resultar verdadeiro entrave para a formalização de negócios.
Com o advento do projeto de lei denominado “Marco Legal das Garantias”, surge uma oportunidade de aprimoramento e clarificação desse cenário, permitindo consolidar no Judiciário brasileiro a admissibilidade do crédito fiduciário, seja ele presente ou futuro, como garantia.
Como se sabe, a alienação fiduciária de bens imóveis foi instituída pela Lei nº 9.514/1997. Em seu artigo 24, há uma disposição expressa – mas nem sempre observada – sobre a necessidade de se estipular as condições de “reposição do crédito fiduciário”, vejamos:
“Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá:
I – o valor do principal da dívida;
II – o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário;
III – a taxa de juros e os encargos incidentes;
IV – a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição;
V – a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária;
VI – a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão;
VII – a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27. […]”
Pela leitura desse dispositivo, pode-se afirmar que a lei não fez distinção entre créditos presentes, futuros ou de qualquer outra natureza. Ao contrário, há uma alusão genérica à negociação da forma de pagamento da dívida garantia, até porque as relações variadas e dinâmicas do mercado demandam justamente tal flexibilidade.
Atento à ausência de limitação quanto à utilização do crédito fiduciário rotativo como garantia, o Conselho Superior de Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo já trouxe luz sobre a questão ao julgar o recurso de apelação nº 1024566-08.2020.8.26.0224, em 15 de abril de 2021.
A causa, patrocinada pelo Teixeira Fortes, envolveu uma recusa por parte do registrador em qualificar o instrumento apresentado pelo credor fiduciário, sob o argumento de que não estavam claramente indicados o valor de cada parcela e as respectivas datas de vencimento, já que o título se limitava a informar o valor da dívida principal e o prazo para o cumprimento das obrigações (no caso, 60 meses).
Seguindo o voto do relator, o Des. Ricardo Anafe, os julgadores foram contundentes ao rejeitar os obstáculos apresentados pelo registrador e reforçar “a possibilidade de instituição de alienação fiduciária como forma de garantia de qualquer espécie de contrato, inclusive o contrato de crédito rotativo, ou, como se depreende ser o caso em análise, o contrato de cessão de crédito com responsabilidade do cedente pagar pelos créditos não adimplidos”.
Conforme consignado na decisão, a alienação fiduciária de bens imóveis, embora introduzida pela Lei nº 9.514/1997, não se limita apenas às transações de aquisição destes bens. Na realidade, o § 1º do artigo 22 deixa claro que a alienação fiduciária pode servir como garantia de qualquer contrato, inclusive os de crédito rotativo.
Recentemente aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção presidencial, o Projeto de Lei nº 4.188/2021, apelidado de Marco Legal das Garantias, deve representar uma solução para a controvérsia ainda existente no Judiciário a respeito do assunto. O destaque é para o artigo 10, que, ao tratar do concurso de credores na execução extrajudicial da garantia imobiliária, faz referência literal aos créditos futuros, condicionados ou rotativos:
“Art. 10. Quando houver mais de um crédito garantido pelo mesmo imóvel, realizadas averbações de início da excussão extrajudicial da garantia hipotecária ou, se for o caso, de consolidação da propriedade em decorrência da execução extrajudicial da propriedade fiduciária, o oficial do registro de imóveis competente intimará simultaneamente todos os credores concorrentes para habilitarem os seus créditos, no prazo de 15 (quinze) dias, contado da data de intimação, por meio de requerimento que contenha:
I – o cálculo do valor atualizado do crédito para excussão da garantia, incluídos os seus acessórios;
II – os documentos comprobatórios do desembolso e do saldo devedor, quando se tratar de crédito pecuniário futuro, condicionado ou rotativo; e
III – a sentença judicial ou arbitral que tornar líquido e certo o montante devido, quando ilíquida a obrigação garantida.
§ 1º Decorrido o prazo de que trata o caput deste artigo, o oficial do registro de imóveis lavrará a certidão correspondente e intimará o garantidor e todos os credores em concurso quanto ao quadro atualizado de credores, que incluirá os créditos e os graus de prioridade sobre o produto da excussão da garantia, observada a antiguidade do crédito real como parâmetro na definição desses graus de prioridade.
§ 2º A distribuição dos recursos obtidos a partir da excussão da garantia aos credores, com prioridade, ao fiduciante ou ao hipotecante, ficará a cargo do credor exequente, que deverá observar os graus de prioridade estabelecidos no quadro de credores e os prazos legais para a entrega ao devedor da quantia remanescente após o pagamento dos credores nas hipóteses, conforme o caso, de execução extrajudicial da propriedade fiduciária ou de execução extrajudicial da garantia hipotecária.”
A previsão expressa trazida pelo projeto de lei serve como uma reafirmação do posicionamento já defendido pelo Teixeira Fortes no sentido de ser plenamente admissível a vinculação de garantias tanto a créditos futuros quanto a créditos rotativos.
A respeito do mencionado “concurso de credores”, o Marco Legal das Garantias busca, em sua essência, regular situações em que há mais de um crédito garantido pelo mesmo imóvel, estabelecendo uma ordem de prioridade entre os credores e delineando os procedimentos para a satisfação de seus respectivos créditos.
De acordo com o artigo reproduzido acima, iniciada a execução extrajudicial da garantia, todos os credores envolvidos devem ser intimados pelo oficial do registro de imóveis para habilitarem seus créditos. A distribuição dos recursos obtidos a partir da execução da garantia é, então, feita pelo credor exequente, que deve respeitar a ordem de prioridade estabelecida e assegurar que os valores sejam corretamente distribuídos entre os credores e, eventualmente, ao devedor, no caso de sobras.
Tal procedimento representa um avanço no tratamento de situações de múltiplos créditos garantidos por um mesmo bem, estabelecendo regras para a satisfação dos direitos dos credores e protegendo, ao mesmo tempo, os direitos do devedor.
E vai beneficiar diretamente as operações envolvendo créditos futuros ou rotativos realizadas por Fundos de Investimento em Direitos Creditórios, Companhias Securitizadoras e Empresas de Factoring.
Numa perspectiva geral, pelo menos em relação à alienação fiduciária de bens imóveis, o Marco Legal das Garantias, caso sancionado nos termos aqui referenciados, proporcionará maior segurança, previsibilidade e flexibilidade nas operações de crédito no mercado brasileiro, evitando restrições desnecessárias sobre a natureza dos créditos que podem ser objeto de garantia. O Teixeira Fortes continuará acompanhando as atualizações sobre o tema.
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