Adquirentes de imóveis não devem dispensar a realização de due diligence

16/11/2023

Por Orlando Quintino Martins Neto e Bianca Moreira da Silva

No contexto do mercado imobiliário, a due diligence consiste na obtenção e análise de certidões e informações relativas ao imóvel que se pretende adquirir, bem como de seus proprietários, antecessores e eventuais empresas das quais sejam ou tenham sido sócios, conforme o caso, objetivando mensurar riscos efetivos e potenciais para a segurança da operação.

Um dos principais objetivos da due diligence é evitar fraude à execução ou a credores, situações que, para serem afastadas, exigem a comprovação da boa-fé do adquirente, o que está diretamente ligado à adoção das cautelas necessárias para a realização da compra e venda.

Já abordamos a importância da due diligence em duas ocasiões. A primeira foi em julho de 2014, oportunidade em que comentamos as ‘Precauções necessárias ao adquirir um imóvel: a importância da due diligence imobiliária’ (clique aqui). Naquela época, não havia uma legislação específica sobre o assunto e as decisões judiciais eram baseadas na Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça, que estabelece que ‘o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente’.

Posteriormente, em janeiro de 2015, a Lei 13.097/2015 trouxe mudanças significativas relacionadas à segurança jurídica dos negócios imobiliários, ao estabelecer, no parágrafo único do artigo 54, que situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis não podem ser opostas ao terceiro de boa-fé. O propósito do referido dispositivo foi o de reforçar a eficácia dos atos constantes do Registro de Imóveis, por meio da chamada “concentração dos atos na matrícula”. Ou seja, apenas as situações jurídicas existentes nas matrículas poderiam ser opostas ao terceiro adquirente.

O Teixeira Fortes acompanhou de perto o comportamento da jurisprudência após a promulgação da referida lei e, em março de 2019, reafirmou que a due diligence continuava sendo um instrumento fundamental para a segurança dos negócios imobiliários, como demonstra o artigo ‘A importância da prova da boa-fé para evitar a perda de imóveis adquiridos’ (clique aqui).

Depois, em junho de 2022, com a promulgação da Lei 14.382/2022 (conversão da Medida Provisória 1.085/2021), foi incluído o § 2º ao artigo 54 da Lei 13.097/2015, para fazer constar expressamente que, para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos, é dispensável “a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais”.

Ao que parece, essa alteração legislativa é mais uma tentativa de se proteger o adquirente do imóvel que apenas consultou a matrícula imobiliária e nela não encontrou nenhum ônus.

A despeito dessa inovação legislativa, reiteramos nosso posicionamento de que a simples consulta à matrícula do imóvel não é suficiente para garantir uma aquisição segura.

Vejamos.

Tanto a Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça quanto a Lei 13.097/2015 (alterada pela Lei 14.382/2022) buscam proteger o adquirente que consultou apenas a matrícula imobiliária, presumindo que a aquisição do bem tenha ocorrido de boa-fé.

Contudo, é fundamental compreender que a boa-fé – requisito essencial para proteção do bem adquirido – deve estar presente não apenas na aquisição atual, mas em todo o histórico de transferências do imóvel. Isso porque, se em algum momento, nas alienações anteriores, a boa-fé não esteve presente, as alienações subsequentes poderão ser questionadas.

Para ilustrar essa questão, destacamos um processo em fase de execução patrocinado pelo Teixeira Fortes, em que o credor obteve sentença favorável em sede de Embargos de Terceiro, confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em julho de 2023. Nesse caso, uma compra e venda realizada em 2014 foi declarada ineficaz, devido ao reconhecimento de conluio entre as partes (vendedores e compradores), com a intenção de frustrar a execução.

O acórdão foi assim ementado:

“Existência de demanda capaz de reduzir os executados à insolvência à época do negócio. Inteligência do art. 792, IV, do CPC. Alienantes que se tornaram executados por desconsideração de personalidade jurídica de sociedade, ré na fase de conhecimento, de que eram sócios à época do negócio impugnado. Prática de diversos atos, já naquele momento, caracterizadores de abuso de finalidade com claro propósito de, mediante blindagem patrimonial, prejudicar credores. A fraude ora reconhecida foi apenas um deles.

 

A decisão judicial de desconsideração de personalidade jurídica de sociedade tem natureza declaratória, portanto, com efeitos ‘ex tunc’ (doutrina de TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER). Dizer que teria efeitos ‘ex nunc’ equivaleria ao absurdo de sustentar-se que quem dela abusa não teria praticado ilícito senão quando proferida a decisão de desconsideração.

 

Insolvência dos alienantes que também fundamentou a desconsideração da personalidade jurídica de devedor originário para responsabilizá-los pela dívida exequenda. Prova dos autos a demonstrar a situação de insolvência. Averbação, na matrícula imobiliária, de arrolamento do bem em garantia de processo administrativo tributário em curso, promovido pela Receita Federal. Protestos cambiais em nome do executado varão, de plena ciência dos adquirentes.

 

Adquirentes, além de tudo, genitores e sogros de devedores, devendo-se presumir, por tal motivo, tivessem ciência inequívoca da existência de demanda que poderia levá­-los à insolvência. Precedentes do STJ.

 

Ausência de prova nos autos de pagamento do preço. Comprovantes apresentados para tanto posteriores à escritura, que, de sua parte, consigna que o preço já estava pago quando da lavratura. Comprovantes, de resto, relacionados a outro negócio e a aluguéis repassados pelos apelantes a sua filha, executada, pela exploração do imóvel objeto da fraude. Boa-fé afastada. Precedentes deste Tribunal.

 

Outro indício veemente da fraude: preço sensivelmente inferior ao real valor do imóvel objeto da fraude. Precedentes deste Tribunal.

 

Manutenção da sentença, também nos termos do art. 252 do RITJSP. Apelação a que se nega provimento.”

A constatação da má-fé dos adquirentes foi possível porque o Teixeira Fortes, no curso da demanda, obteve acesso à escritura de compra e venda do imóvel e outros documentos, e notou que (i) a suposta venda ocorreu de ascendente para descendente; (ii) a operação foi realizada por um preço significativamente abaixo do valor de mercado e do valor venal do imóvel; e (iii) não houve comprovação do pagamento.

Além disso, a decisão judicial destacou que os antigos proprietários, a despeito de não serem réus na ação de conhecimento quando da alienação (2014), tendo sido incluídos no polo passivo apenas em 2021, após o julgamento do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), sempre foram responsáveis pela dívida da empresa que integravam como sócios.

O relator destacou no acórdão que:

“Prosseguindo, questão que merece ainda enfrentamento é a de que Carlos e Moema não figuraram como réus na fase de conhecimento da ação de rescisão contratual ajuizada por Rubens contra a CMS (de que os primeiros eram sócios à época da fraude), tendo ingressado apenas na fase de cumprimento de sentença mediante desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

 

Em razão disto, sustentam ausência de má-fé na aquisição do imóvel, eis que não havia ação capaz de reduzir os alienantes, executados, à insolvência à época do negócio impugnado.

 

Ora, Carlos e Moema sempre foram responsáveis pela dívida ali cobrada, de forma que a própria ação de rescisão contratual era capaz de reduzi-los à insolvência (como, de fato, já constatado), ainda que, formalmente, partes não fossem na fase de conhecimento.

 

Sua inclusão no polo passivo da ação, já na condição de executados, deu-se por tutela declaratória (portanto, com efeitos ex tunc), eis que por decisão que desconsiderou a personalidade jurídica da CMS (sobre a natureza declaratória deste tipo de provimento, confira-se TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER e outros, Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil – artigo por artigo, pág. 255).

 

Com efeito, dizer que provimento jurisdicional que desconsidera personalidade jurídica é constitutivo equivale a sustentar que sócio ou administrador que abusa da personalidade jurídica da sociedade não teria praticado ilícito, até que sobrevenha provimento jurisdicional que o reconheça, o que seria absurdo.

 

Evidente que não é o que ocorre. Se abusou, já é responsável, exigindo-se provimento jurisdicional apenas para declarar tal situação jurídica.”

O caso concreto ressalta a importância da due diligence para aquisição de um imóvel, uma vez que a fraude somente foi constatada por meio de uma investigação minuciosa do imóvel, dos proprietários atuais e dos antecessores.

A ausência de uma due diligence e das cautelas necessárias para se adquirir um imóvel, aliada a evidências de que o vendedor (ou seus antecessores) praticaram atos fraudulentos na tentativa de proteger seu patrimônio, inevitavelmente colocará em xeque a boa-fé do comprador que confiou apenas nas informações que constam na certidão de matrícula.

Portanto, reforçamos que, independentemente da entrada em vigor da Lei 13.097/2015 e das alterações trazidas pela Lei 14.382/2022, a realização de uma due diligence detalhada continua sendo de extrema relevância, especialmente para identificar eventuais atos fraudulentos praticados pelos vendedores ou por seus antecessores, e que eventualmente possam pôr em risco a eficácia e a segurança da transação imobiliária.

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