08/03/2024
A Lei Federal nº 14.754/2023 alterou substancialmente as regras de tributação aplicáveis aos investimentos de pessoas físicas em companhias offshore. No entanto, embora essa lei tenha sido concebida com a intenção de fortalecer a arrecadação fiscal e promover uma tributação mais justa com relação a quem é considerado “super rico”, ela também suscita questionamentos quanto à sua constitucionalidade, especialmente no que diz respeito à tributação dos lucros apurados pelas companhias offshore.
O cerne da controvérsia reside na disposição contida na Lei Federal nº 14.754/2023 que estabelece a tributação automática dos lucros auferidos pelas companhias offshore controladas por pessoas físicas residentes no Brasil, ainda que os lucros não sejam creditados ou pagos ao investidor. A nosso ver, a nova regra é incompatível com os princípios que regem o Sistema Tributário Nacional, conforme será demonstrado a seguir.
A mudança da lei sobre a tributação das offshore
Anteriormente, a pessoa física era tributada no Brasil apenas quando a companhia offshore controlada creditasse ou pagasse dividendos a ela, mas agora os lucros das controladas serão tributados anualmente, mesmo que não sejam creditados ou pagos ao investidor, à alíquota de 15%, na Declaração de Ajuste Anual (DAA) [1].
Ou seja, se antes o contribuinte só era onerado quando realizava de fato os lucros, agora ele será tributado pela mera apuração do lucro contábil pela entidade controlada no exterior. Isso significa dizer que não haverá mais o diferimento do Imposto de Renda para o momento da realização do lucro.
O afastamento da tributação automática dos lucros somente se dará caso a controlada não esteja situada em um paraíso fiscal ou caso mais de 60% das receitas por ela obtidas forem referentes à ‘renda ativa própria’, isto é, mediante a exploração de atividade econômica que não envolva royalties, juros, dividendos, participações societárias, aluguéis, ganhos de capital, aplicações financeiras e intermediação financeira [2].
O fato é que a tributação dos lucros antes de sua efetiva disponibilidade para o contribuinte levanta questionamentos quanto à constitucionalidade da lei em questão. Esses questionamentos surgem em diversos aspectos, como o dever de observância ao regime de caixa na tributação das pessoas físicas, o momento em que a renda se torna disponível para o contribuinte e a possível violação ao princípio tributário da capacidade contributiva. É fundamental detalhar esses pontos sensíveis para entender melhor o assunto.
Regime de Caixa X Regime de Competência
Acerca do regime de caixa, tem-se que sua característica é a tributação dos rendimentos que foram efetivamente recebidos pelo contribuinte, no período de apuração. A ideia se torna factível da leitura do artigo 3º, parágrafo único, da Lei Federal nº 9.250/1995, que prevê “o imposto de que trata este artigo será calculado sobre os rendimentos efetivamente recebidos em cada mês”.
A circunstância do regime de caixa é a que ocorre, em regra, na tributação da renda das pessoas físicas, que apuram o imposto baseado nos rendimentos que de fato forem auferidos no exercício. Por outro lado, as pessoas jurídicas estão sujeitas ao regime de competência, o qual se estabelece o recolhimento do imposto de renda sobre “as receitas e rendimentos ganhos no período independentemente da sua realização em moeda” [3].
Com isso, fica evidente a diferença entre os regimes de caixa e competência. Ambos são marcados pela “realização” ou não do rendimento. Enquanto as legislações atribuem de um lado o regime de caixa às pessoas físicas; do outro, apontam o regime de competência às pessoas jurídicas.
A aplicação desses regimes foi debatida no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.588, no qual foi consignado que o lucro da investida no exterior não precisaria ser efetivamente realizado para que houvesse a tributação de imposto de renda da pessoa jurídica investidora.
Na hipótese, a Suprema Corte analisou a constitucionalidade do artigo 74, parágrafo único, da MP 2.158/2001 , que previa a tributação dos rendimentos apurados pelas entidades controladas, independentemente da realização do lucro pelas pessoas jurídicas.
Embora voltado às pessoas jurídicas, extrai-se desse precedente que o Ministro Nelson Jobim consignou em seu voto que não deveria ser dado o mesmo tratamento às pessoas físicas, diferenciando o regime de caixa e regime de competência. Cita-se trecho do voto:
“(…) (1) REGIME DE CAIXA E REGIME DE COMPETÊNCIA.
A base de tal distinção – ou diferença – está no regime a que cada uma delas – física ou jurídica – estão submetidas. Para as pessoas físicas impera o REGIME DE CAIXA. Já, para as pessoas jurídicas, o REGIME DE COMPETÊNCIA.
No REGIME DE CAIXA, exige-se o registro de receitas e despesas quando efetivamente recebidas ou pagas. Somente quando recebido o valor do crédito ou quando pago o valor do débito tem-se a alteração, para mais ou para menos, no patrimônio da pessoa física.
A só existência do direito subjetivo ou da obrigação, exigíveis, não altera, para fins tributários, a situação patrimonial da pessoa física.
Não é o que se passa no REGIME DE COMPETÊNCIA, a que se submetem as empresas.” (grifos nossos).
Embora o julgado tratasse de perquirir a tributação da renda auferida pelas pessoas jurídicas, a tese defendida pelo Ministro Nelson Jobim é que às pessoas físicas não pode ser imputado o regime de competência, como pretende fazer a Lei Federal nº 14.754/2023.
Logo, a nova regra de tributação das offshore busca dar às pessoas físicas o tratamento do regime de competência, e não o regime de caixa, o que deve ser rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal, tornando questionável sua constitucionalidade e legalidade.
O momento da disponibilidade da renda. Violação ao critério temporal da regra-matriz de incidência tributária
Em decorrência da crítica acima exposta, a Lei Federal nº 14.754/2023 carrega consigo aparente violação ao artigo 43 do Código Tributário Nacional, que atesta como fato gerador do imposto “a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica” da renda.
Essa afronta se dá porque a lei estabelece a tributação do lucro da offshore antes mesmo do investidor o realizá-lo, ou seja, o imposto deve ser recolhido a despeito da aquisição da disponibilidade econômica (efetivo acréscimo patrimonial) ou jurídica (direito à efetividade do acréscimo patrimonial).
Ora, se os valores não forem efetivamente creditados ou recebidos pelo contribuinte pessoa física, conforme regime de caixa, não se pode concluir haver acréscimo patrimonial a ensejar a incidência do Imposto de Renda.
Há evidente violação à regra-matriz de incidência tributária, no que diz respeito ao critério temporal e, quiçá, material. Deveras, o fato imponível deveria ocorrer quando houvesse acréscimo patrimonial do contribuinte, e não da possibilidade de ele ocorrer.
Em situação bastante semelhante a esta, o Supremo Tribunal Federal fixou no RE 172.058 [5], de relatoria do Min. Marco Aurélio, o entendimento de que a tributação dos sócios ou acionistas não deve se dar na data da apuração do lucro pela pessoa jurídica, com base na “expectativa” ou ficção da disponibilidade da renda:
“(…) Pois bem, diante do contexto legal supra, impossível é dizer da aquisição da disponibilidade jurídica pelos acionistas com a simples apuração, e na data respectiva, do lucro líquido pelas pessoas jurídicas. O encerramento do período-base aponta-o, mas o faz relativamente a situação que não extravasa o campo de interesse da própria sociedade. Ocorre, é certo, uma expectativa, mas, enquanto simples expectativa, longe fica de resultar na aquisição da disponibilidade erigida pelo artigo 43 do Código Tributário Nacional como fato gerador. Uma coisa é a incidência do imposto de renda sobre o citado lucro e, portanto, a obrigação tributária da própria pessoa jurídica. Algo diverso é a situação dos sócios, no que não passam, com a simples apuração do lucro líquido na data do encerramento do período-base, a ter a disponibilidade reveladora do fato gerador.” (grifos nossos).
O julgado em análise, conquanto não cite as entidades controladas no exterior, é suficiente para embasar a inconstitucionalidade da Lei Federal nº 14.754/2023. A lógica é simples: assim como citado no voto condutor do RE 172.058, busca-se promover a oneração de uma ficção de renda da pessoa física.
Segundo Ives Gandra de Martins [6], sem a disponibilidade econômica ou jurídica e sem acréscimo patrimonial, não se pode haver a imposição de imposto de renda:
“O certo é que, sem aquisição de disponibilidade econômica (fática) ou jurídica (documental) e sem acréscimo patrimonial, não há possibilidade de ocorrência da hipótese de imposição do imposto sobre a renda. Acréscimo patrimonial é tudo aquilo que se acrescenta ao patrimônio anterior, tornado o plus da adição, tributável.” (grifo nosso).
Dessa maneira, vislumbra-se mais uma grave inconsistência da nova regra estabelecida para a tributação das pessoas físicas por seus investimentos em offshore, o que poderá motivar judicialização do tema.
A renda que ainda não foi disponibilizada. Afronta à capacidade contributiva do contribuinte
E, por fim, também decorrente da disponibilidade da renda, não se pode admitir a oneração dos contribuintes nos moldes estabelecidos pela Lei Federal nº 14.754/2023, pois há afronta ao princípio da capacidade contributiva.
Previsto na Constituição Federal no artigo 145, §1º [7], esse princípio tem como pilar o dever de cada cidadão contribuir aos cofres públicos na proporção de seu poder econômico. Se o Poder Público exige do contribuinte imposto sobre um rendimento ao qual ele não teve acesso, não é demais concluir que a Lei Federal nº 14.754/2023 viola o princípio da capacidade contributiva.
Nota-se que, a exemplo da adoção de regime de competência e da equivocada interpretação da disponibilidade da renda, a violação da capacidade contributiva é um ponto sensível na Lei Federal nº 14.754/2023, passível de ser questionado judicialmente.
Conclusão
Diante da análise da Lei Federal nº 14.754/2023, que prevê a tributação da pessoa física investidora pelos lucros apurados pelas companhias offshore, torna-se evidente a existência de graves incompatibilidades da lei com os princípios fundamentais do Sistema Tributário Nacional.
A imposição de tributação sobre lucros ainda não disponibilizados para os contribuintes contraria frontalmente o regime de caixa adotado pelas pessoas físicas para apuração do imposto de renda, bem como viola o princípio da disponibilidade da renda. Além disso, a exigência de tributação dos lucros das companhias offshore antes da sua distribuição ao investidor constitui uma clara afronta ao princípio da capacidade contributiva, que deve nortear o sistema tributário nacional.
Portanto, diante da inconstitucionalidade da Lei Federal nº 14.754/2023, é factível que os contribuintes se valham de meios legais para questionar sua aplicação e adaptar o planejamento de seus investimentos, com o fim de mitigar o impacto financeiro trazido pelas alterações nas regras de tributação.
[1] Art. 2º A pessoa física residente no País declarará, de forma separada dos demais rendimentos e dos ganhos de capital, na Declaração de Ajuste Anual (DAA), os rendimentos do capital aplicado no exterior, nas modalidades de aplicações financeiras e de lucros e dividendos de entidades controladas.
[2] Art. 5º (…) § 5º Sujeitam-se ao regime tributário previsto neste artigo somente as controladas, diretas ou indiretas, que se enquadrarem em uma ou mais das seguintes hipóteses: I – estejam localizadas em país ou em dependência com tributação favorecida ou sejam beneficiárias de regime fiscal privilegiado de que tratam os arts. 24 e 24-A da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996; ou II – apurem renda ativa própria inferior a 60% (sessenta por cento) da renda total. § 6º Para fins do disposto neste artigo, considera-se: I – renda ativa própria: as receitas obtidas diretamente pela entidade controlada mediante a exploração de atividade econômica própria, excluídas as receitas decorrentes exclusivamente de: a) royalties; b) juros; c) dividendos; d) participações societárias; e) aluguéis; f) ganhos de capital, exceto na alienação de participações societárias ou ativos de caráter permanente adquiridos há mais de 2 (dois) anos; g) aplicações financeiras; h) intermediação financeira.
[3] Art. 187. A demonstração do resultado do exercício discriminará: I – a receita bruta das vendas e serviços, as deduções das vendas, os abatimentos e os impostos; II – a receita líquida das vendas e serviços, o custo das mercadorias e serviços vendidos e o lucro bruto; III – as despesas com as vendas, as despesas financeiras, deduzidas das receitas, as despesas gerais e administrativas, e outras despesas operacionais; IV – o lucro ou prejuízo operacional, as outras receitas e as outras despesas; V – o resultado do exercício antes do Imposto sobre a Renda e a provisão para o imposto; VI – as participações de debêntures, empregados, administradores e partes beneficiárias, mesmo na forma de instrumentos financeiros, e de instituições ou fundos de assistência ou previdência de empregados, que não se caracterizem como despesa; VII – o lucro ou prejuízo líquido do exercício e o seu montante por ação do capital social. § 1º Na determinação do resultado do exercício serão computados: a) as receitas e os rendimentos ganhos no período, independentemente da sua realização em moeda; e b) os custos, despesas, encargos e perdas, pagos ou incorridos, correspondentes a essas receitas e rendimentos.
[4] Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento. Parágrafo único. Os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior até 31 de dezembro de 2001 serão considerados disponibilizados em 31 de dezembro de 2002, salvo se ocorrida, antes desta data, qualquer das hipóteses de disponibilização previstas na legislação em vigor.
[5] Julgado no dia 30.06.1995. P. 14/15.
[6] MARTINS, Ives Gandra da Silva, in O Fato Gerador do Imposto sobre a Renda e a Aquisição de Disponibilidade Econômica ou Jurídica que Implique Acréscimo Patrimonial – Inteligência do artigo 43 do Código Tributário Nacional – Ilegalidade de Pretendida Incidência sem Ocorrência de Acréscimo, Revista Dialética de Direito Tributário nº 137, 2007, p. 114.
[7] Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: (…) § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
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