08/03/2024
A depender da política de investimento, Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) engajam-se na aquisição de recebíveis de empresas que se encontram em recuperação judicial. Quando os créditos adquiridos não são liquidados, pode surgir a responsabilidade solidária das empresas cedentes, seja devido a falhas originárias dos créditos cedidos – a não entrega das mercadorias aos cliente, por exemplo – ou pela inadimplência dos sacados, quando contratada a coobrigação.
Neste contexto, enquanto a empresa cedente estiver em processo de recuperação judicial, cabe ao FIDC implementar estratégias de cobrança apropriadas, que podem variar desde o ingresso de ações de execução até o pedido falimentar da empresa em recuperação. Mas o que acontece se a empresa em recuperação judicial vier a falir?
Sob tais circunstâncias, os créditos adquiridos pelo FIDC durante o período de recuperação judicial serão tratados como extraconcursais, assegurando-lhes uma classificação prioritária no processo de falência.
É exatamente o que diz o artigo 67, combinado com o artigo 84, I-E, ambos da Lei nº 11.101/2005. Os valores decorrentes de antecipação de recebíveis durante a recuperação judicial se enquadram nesta categoria.
Os créditos decorrentes de antecipação de recebíveis (art. 84, inciso I-E) estão em quinto lugar na ordem de recebimentos dos créditos extraconcursais.
Conforme a lei vigente, os créditos que são pagos antes do crédito decorrente de antecipação de recebíveis são os seguintes:
(i) despesas indispensáveis para administração da falência, inclusive se houver atividade empresarial após a sentença de quebra, e salários vencidos nos 3 meses anteriores ao decreto falimentar, limitados a 5 salários-mínimos por trabalhador (art. 84, I-A);
(ii) valores que foram entregues ao devedor em recuperação judicial pelo financiador, hipóteses dos contratos de DIP Financing (art. 84, I-B);
(iii) valores objeto de restituição em dinheiro, que são pagos aos credores de contratos de câmbio para exportação; credores proprietários de bens arrecadados no processo, caso não seja possível restituir o bem; valores entregues de boa fé ao falido se o contrato for revogado ou tornado ineficaz;
(iv) restituição às Fazendas Públicas, na hipótese de tributos passíveis de retenção na fonte, descontos de terceiro ou sub-rogação, assim como valores recebidos por agentes arrecadadores e não recolhidos aos cofres públicos (art. 84, I-C); e,
(v) remunerações do administrador judicial e auxiliares, reembolsos ao Comitê de Credores e créditos trabalhistas relativos a serviços prestados após o decreto de falência.
Apesar de o crédito resultante de antecipação de recebíveis se tratar de um crédito extraconcursal, é necessário que existam ativos suficientes para o pagamento integral dos créditos que o preferem.
Por isso, garantir que os créditos extraconcursais anteriores estejam classificados de forma correta, e os seus valores de acordo com as habilitações e impugnações, é tão importante para o FIDC credor extraconcursal quanto garantir que o seu crédito esteja adequadamente arrolado. A razão é simples: se os demais créditos não estiverem classificados ou relacionados de forma correta, o fundo corre o risco concreto de não receber nada.
Existem basicamente duas formas para tratar da classificação dos créditos dos demais credores: (1) a impugnação de crédito, que pode ser ajuizada por qualquer credor interessado, que terá legitimidade para intervir em qualquer outra impugnação de crédito; e (2) a ação de reclassificação, retificação ou exclusão de crédito, nos casos de falsidade, dolo, simulação, fraude, erro essencial, ou ainda de documentos ignorados quando da inclusão do crédito no quadro-geral de credores. Trata-se da ação prevista no Artigo 19 da Lei nº 11.101/2005.
Pode haver um terceiro caminho: a depender do estágio do processo e da forma com que foi conduzido, a simples intervenção do credor no processo falimentar pode apresentar resultados positivos. Foi exatamente o que ocorreu em uma causa patrocinada pelo Teixeira Fortes Advogados Associados, no interesse de uma empresa de factoring que antecipou o pagamento de recebíveis, em prática idêntica à adotada por FIDCs.
Entre o pedido de recuperação judicial e a sentença de quebra se passaram cerca de 10 meses. Apesar de a alienação dos ativos da falida ter arrecadado mais de R$ 14.000.000,00, no plano de rateio apresentado pelo Administrador Judicial a maior parte do valor estava sendo destinado para cerca de 70 credores trabalhistas então considerados extraconcursais: mais de R$ 8.000.000,00. O restante seria pago ao próprio administrador e à Fazenda Pública.
Havia ainda um agravante: o plano de rateio apresentado pelo Administrador Judicial determinava a incidência de correção monetária sobre os créditos, desde a data da quebra até a data do pagamento.
A situação era incomum, especialmente em relação aos créditos trabalhistas considerados extraconcursais. Como mencionado, o crédito trabalhista extraconcursal na recuperação judicial convolada em falência é aquele originado de serviços prestados após o pedido de recuperação, exclusivamente, e deverá ser pago na ordem definida pela lei.
Ao analisar o quadro geral de credores e o plano de rateio apresentados pelo Administrador Judicial, verificou-se que todos os créditos trabalhistas estavam aglutinados como extraconcursais. Não havia diferença entre o crédito devido a título de verbas salariais limitadas a cinco salários-mínimos anteriores ao decreto de quebra, o crédito decorrente de serviços prestados após a falência, e os créditos efetivamente devidos entre o pedido de recuperação e a sentença que decretou a falência.
Os credores foram intimados para se manifestar a respeito da proposta do Administrador, após o que foi realizada uma análise minuciosa de todos os créditos trabalhistas indicados como extraconcursais para pagamento: foram verificados os processos trabalhistas relacionados, com anotação dos salários, datas de admissão e demissão, além do cálculo proporcional a cada um dos pagamentos que deveriam ser realizados em consonância com a ordem legal.
Os equívocos do Administrador ficaram evidentes: não era possível que, em 10 meses de trabalho, vários trabalhadores com salários de menos de R$ 2.000,00 tivessem mais de R$ 180.000,00, cada um, a receber em créditos extraconcursais.
O resultado dessa análise foi apresentado ao juízo falimentar com dois pedidos: (1) a discriminação dos pagamentos do rateio em conformidade com cada dispositivo legal, evitando a aglutinação dos créditos trabalhistas anteriores e posteriores à recuperação judicial; e (2) os créditos não deveriam ser atualizados monetariamente, por ausência de autorização legal e sob pena de prejuízo à paridade entre os credores.
O primeiro pedido foi deferido pelo juiz e atendido pelo Administrador. O resultado foi imediato: os pagamentos de créditos trabalhistas extraconcursais, que antes superavam R$ 8.000.000,00, passaram a pouco mais de R$ 1.200.000,00 ao computar-se apenas os créditos devidos após a recuperação judicial, mesmo aumentando-se para mais de 160 o número de credores daquela classe.
Quanto à atualização dos créditos, o magistrado determinou que os créditos deveriam ser atualizados com correção monetária quando dos respectivos pagamentos, pois o artigo 124 da Lei nº 11.101/2005 apenas veda o pagamento de juros após a sentença de quebra, sendo a atualização monetária mera recomposição da moeda.
Essa determinação foi revertida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em medida liminar decorrente de um recurso assinado pelo Teixeira Fortes Advogados, o que, com a exclusão da correção monetária, reduziu em cerca de R$ 2.000.000,00 os pagamentos que seriam efetuados aos credores inicialmente arrolados como extraconcursais.
Conforme a decisão proferida, o pagamento da atualização monetária a credores na falência somente será autorizado se todos os créditos habilitados forem pagos. Após isso, caso ainda existam recursos, eles serão utilizados em novos rateios entre os credores habilitados, observada a ordem legal.
Apesar de ser uma via tortuosa, o processo falimentar pode resultar na recuperação de ativos investidos pelos fundos de investimento em empresas em recuperação judicial, desde que seja conduzido de forma apropriada: não basta garantir que seja reconhecida a extraconcursalidade do crédito, é imprescindível trabalhar para que os demais credores estejam classificados em conformidade com a ordem legal.
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