Alterações Tributárias nos Fundos Fechados: Análise da Lei 14.754/2023
A Lei 14.754, de 12 de dezembro de 2023, introduziu alterações significativas nas regras de tributação dos fundos fechados no Brasil. O objetivo da norma, segundo o Governo Federal, seria resolver um problema histórico de diferimento tributário – prática que consiste no adiamento do pagamento de tributo. Uma das mais polêmicas mudanças promovidas pela referida lei foi a chamada tributação do “estoque” de rendimentos acumulados pelos fundos fechados até 31/12/2023, conforme prevê o art. 27:
Art. 27. Os rendimentos apurados até 31 de dezembro de 2023 nas aplicações nos fundos de investimento que não estavam sujeitos até o ano de 2023 à tributação periódica nos meses de maio e novembro de cada ano e que estarão sujeitos à tributação periódica a partir do ano de 2024, com base nos arts. 17 ou 26 desta Lei, serão apropriados pro rata tempore até 31 de dezembro de 2023 e ficarão sujeitos à incidência do IRRF à alíquota de 15% (quinze por cento).
§1º Os rendimentos de que trata o caput deste artigo corresponderão à diferença positiva entre o valor patrimonial da cota em 31 de dezembro de 2023, incluídos os rendimentos apropriados a cada cotista, e o custo de aquisição calculado de acordo com as regras previstas nos §§ 2º, 3º e 4º do art. 17 desta Lei.
A Discussão Constitucional
A tributação dos rendimentos acumulados dos fundos fechados já tinha sido objeto da Medida Provisória 1.184, de 28 de agosto de 2023. Na ocasião, questionamos a constitucionalidade da medida, conforme artigo elaborado pelo Dr. Cylmar Pitelli Teixeira Fortes (artigo disponível aqui).
O principal argumento contrário à tributação do “estoque” de rendimentos dos fundos fechados é a evidente inconstitucionalidade da norma, pois ela afronta um dos princípios basilares do Direito tributário: o princípio da irretroatividade da lei tributária. Previsto no art. 150, III, “a” da Constituição Federal, o referido princípio proíbe a cobrança de tributos sobre fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os instituiu ou aumentou.
Os rendimentos acumulados pelos fundos fechados até 31/12/2023 foram gerados sob um regramento específico que não previa a incidência semestral do IRRF. A Lei 14.754/2023 alterou as regras do jogo, impondo uma nova tributação (o chamado come-cotas) para os lucros dos fundos fechados, que afetou não apenas os eventos futuros, mas também retroagiu para atingir eventos passados, cujos efeitos já estavam consolidados antes da publicação da lei.
Do ponto de vista constitucional, a retroatividade da tributação dos rendimentos dos fundos fechados é absolutamente contestável. A Constituição Federal não deixa margem para dúvidas ao assegurar que a norma que cria ou aumenta tributos somente pode produzir seus efeitos em relação aos fatos que ocorrerem após a sua publicação, sob pena de desestabilizar a segurança jurídica e a irretroatividade tributária.
A Decisão Judicial que Animou os Contribuintes
Considerando que o viés arrecadatório tem prevalecido nas discussões legislativas recentes, dificilmente teríamos uma solução política para afastar, do ordenamento jurídico, a tributação dos rendimentos acumulados dos fundos fechados. A esperança era que o Poder Judiciário, prestigiando o Direito e os seus princípios basilares, reconhecesse a inconstitucionalidade dessa tributação retroativa.
Em recente decisão, o Poder Judiciário deu uma sinalização positiva sobre o tema. Uma sociedade empresária, única cotista de um Fundo de Investimento em Direito Creditórios (FIDC), obteve, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, decisão liminar favorável para suspender a cobrança de IRRF sobre o estoque de rendimentos acumulados no fundo. Na decisão, o Desembargador Rubens Calixto sustentou que a tributação retroativa estabelecida pela Lei 14.754/2023 viola diretamente o princípio constitucional da irretroatividade tributária:
“Ocorre que, ao introduzir essa nova tributação antecipada, a Lei 14.754/23 pretendeu atingir fatos geradores ocorridos anteriormente à sua vigência. Vejamos a redação de seu art. 27: (…)
Portanto, o art. 27 da Lei 14.754/23 determinou a incidência do IRRF sobre os rendimentos auferidos em data anterior ao início de sua vigência, estabelecendo que a base de cálculo de tal tributação seria o valor da diferença positiva entre o valor patrimonial da cota em 31/12/23 – incluindo eventuais rendimentos apropriados pelos cotistas – e o valor do respectivo custo de aquisição.
Nesse ponto, vislumbro que a nova lei não respeitou o princípio da irretroatividade da lei tributária, previsto no art. 150, III, “a”, da CF/88, com a seguinte redação:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)
III – cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;”
Verifica-se, em exame preambular da questão, que a nova lei, que passou a produzir efeitos somente a partir de 1/1/2024, não poderia incidir sobre os rendimentos auferidos até 31/12/23, pois tais fatos geradores ocorreram anteriormente a sua vigência.” [1]
Um dos fundamentos da decisão foi um precedente do Supremo Tribunal Federal (STF), no qual se discutia a inconstitucionalidade da tributação retroativa de lucros auferidos no exterior, por pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil. No caso em questão, ficou decidido que a tributação seria inviável, pois afrontaria os princípios constitucionais da anterioridade e irretroatividade.
A decisão liminar favorável à suspensão da cobrança do IRRF sobre o estoque de rendimentos acumulados até 31/12/2023 ilustra um movimento inicial do Poder Judiciário em reconhecer a inconstitucionalidade dessa tributação retroativa. Embora a decisão não seja definitiva e ainda possa ser objeto de recurso, representa um precedente importante que pode influenciar futuras disputas judiciais sobre a matéria.
Conclusão e Perspectivas Futuras
Muitos investidores pessoas físicas decidiram não questionar a tributação do estoque de rendimentos acumulados no Poder Judiciário, influenciados pela Lei 14.754/2023, que ofereceu uma redução na alíquota do imposto de 15% para 8%. Essa medida foi um incentivo do legislador para que os contribuintes optassem pelo pagamento imediato, evitando litígios.
No entanto, é importante destacar que aqueles que optaram pelo pagamento, mas agora se arrependem, ainda podem pleitear na justiça a devolução do imposto pago. Essa possibilidade pode ser vantajosa sob uma perspectiva de longo prazo, considerando que uma decisão favorável pode resultar na recuperação dos valores pagos indevidamente, corrigidos monetariamente.
Assim, mesmo diante do incentivo oferecido pela redução da alíquota, a contestação judicial permanece como uma opção viável e potencialmente benéfica para aqueles que desejam resguardar seus direitos frente a uma tributação que, conforme discutido, apresenta claros aspectos de inconstitucionalidade. Desse modo, é recomendável que os investidores avaliem suas opções e considerem a possibilidade de buscar uma revisão judicial da tributação retroativa imposta pela Lei 14.754/2023.
[1] Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Agravo de instrumento nº 5014051-66.2024.4.03.0000, Rel. Des. Rubens Calixto, 3ª turma, julgamento em 04.06.2024.
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