A volta da (ilegal) exigência de CND pelos Cartórios

03/07/2024

Por Carlos Victor Pereira e Vinícius de Barros

Histórico da Exigência de CND nos Cartórios

Há alguns anos, os cartórios exigiam a Certidão Negativa de Débitos (CND) para realizar diversos atos da vida civil e empresarial. No entanto, essa prática foi modificada em 2008, com o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nº 173 e 394.

Nesse julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional o artigo 1º, incisos III e IV, da Lei nº 7.711/88, que exigia a comprovação de quitação de créditos tributários, por meio de certidão, para a execução de vários atos, incluindo o registro em Cartório de Registro de Imóveis:

Art. 1º Sem prejuízo do disposto em leis especiais, a quitação de créditos tributários exigíveis, que tenham por objeto tributos e penalidades pecuniárias, bem como contribuições federais e outras imposições pecuniárias compulsórias, será comprovada nas seguintes hipóteses:
(..)
IV – quando o valor da operação for igual ou superior ao equivalente a 5.000 (cinco mil) obrigações do Tesouro Nacional – OTNs:
a) registro de contrato ou outros documentos em Cartórios de Registro de Títulos e Documentos;
b) registro em Cartório de Registro de Imóveis;
(…)
§ 3º A prova de quitação prevista neste artigo será feita por meio de certidão ou outro documento hábil, emitido pelo órgão competente.

A decisão do STF se fundamentou no entendimento de que a exigência de CND constituía sanção política, medida desproporcional e não razoável que constrangia o contribuinte ao pagamento de tributos. A partir de 2008, portanto, os cartórios deixaram de exigir a CND para o registro de atos e contratos.

Reinstituição da Exigência pela Receita Federal

No entanto, em 2022, a Receita Federal fez ressurgir essa exigência, por meio da Instrução Normativa nº 2.110/2022. Baseando-se nos artigos 47 e 48 da Lei nº 8.212/1991 [1] , a Receita Federal passou a compelir os cartórios a exigirem a CND para o registro de alienação ou oneração de bens imóveis, entre outras situações, sob pena de nulidade do ato e cometimento de infração pelos oficiais dos cartórios.

Ação dos Cartórios contra a Exigência de CND

Diante disso, em 2023, a Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (ANOREG) impetrou um mandado de segurança [2] buscando o afastamento da exigência da CND para atos notariais e de registro. A ANOREG alegou que a Lei nº 8.212/1991 é inconstitucional, conforme decidido anteriormente pelo STF.

O pedido liminar formulado no mandado de segurança pela ANOREG foi concedido. Em sua decisão, o Juiz da 9ª Vara Cível Federal de São Paulo consignou que os dispositivos da Lei Federal nº 8.212/1991 são idênticos àqueles declarados inconstitucionais pelo STF no julgamento das ADIs 173 e 394. Veja-se:

“(…) Verifica-se que o Supremo Tribunal Federal, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 173 e nº 394, declarou a inconstitucionalidade do artigo 1º e seus incisos I, III e IV, da Lei 7.711/1988, e a inconstitucionalidade por arrastamento dos parágrafos 1º, 2º e 3º do mesmo texto legal, não mais condicionando a comprovação de pagamento de créditos tributários para fins de registro de transações imobiliárias perante o Cartório de Registro de Imóveis, por entender que tais dispositivos veiculavam sanções políticas destinadas a constranger o contribuinte, por vias oblíquas, ao recolhimento do crédito tributário, mostrando-se ser medida desproporcional e não-razoável a restringir o exercício de atividade econômica e, consequentemente, considerando-a inconstitucional.

 

Com isso, a parte impetrante alega que o mesmo deve ser aplicado aos artigos 47 e 48 da Lei nº. 8.212, de 1991, pois tem conteúdo idêntico àquelas normas julgadas inconstitucionais pela Suprema Corte, possuindo, portanto, os mesmos vícios.

 

De fato, os Tribunais de Justiça dos Estados têm entendido que a exigência de CND, por parte da empresa alienante de imóvel, para fins de registro, é indevida, considerando os julgados do Supremo Tribunal Federal nas ADI’s 394-1-DF e 173-DF.

 

No mais, o Plenário do conselho Nacional de Justiça, quando da análise de processos propostos pela União contra a Corregedoria de Tribunal de Justiça, igualmente, afasta a exigência de ofício de CND, nas operações notariais.

 

Assim, tratando-se o inc. I do art. 47 da Lei nº 8.212/91 de norma que é, do ponto de vista material e teleológico, idêntica à declarada inconstitucional pelo STF, na ADIN 394, e diante dos efeitos erga omnes e vinculante de que desta emanam, vislumbro a plausibilidade do direito e entendo que deve ser observado o posicionamento da Suprema Corte de modo a afastar a exigência de CND quando da alienação ou da oneração de bens imóveis, por possuir a mesma “mens legis”.

 

Ante o exposto, DEFIRO A LIMINAR, para determinar que a autoridade coatora se abstenha de exigir a apresentação de CND dos associados da parte impetrante para os atos registrais, nos termos dos arts. 47 e 48 da Lei nº 8.212/1991.”

Porém, após interposição de um recurso pela União Federal, essa decisão liminar foi revogada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3). Veja-se a ementa do acórdão:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES. CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL. EXIGÊNCIA.ARTIGOS 47 E 48 DA LEI Nº 8.212/91. RECURSO PROVIDO.

 

1. A certidão de quitação fiscal não deve ser confundida com a certidão de regularidade fiscal, pois institutos distintos. Enquanto a certidão de quitação impõe ao contribuinte que todos seus débitos estejam quitados para a sua emissão, a certidão de regularidade fiscal exige do contribuinte apenas a regularidade de seus débitos para que seja emitida.

 

2. A certidão de regularidade fiscal pode ser comprovada pela certidão negativa de débito, que equivale a certidão de quitação, ou pela certidão positiva com efeitos de negativa (na hipótese de o contribuinte ter débitos não pagos, mas que integralmente garantidos ou com a exigibilidade suspensa). Dentro dessa linha de entendimento, não é plausível supor que o inc. I do art. 47 da Lei nº 8.212/91, sob qualquer ângulo que seja analisado, seja idêntico àquela norma declarada inconstitucional pelo STF na ADIN 394.

 

3. Os Notários e Registradores (associados da impetrante) na condição de delegatários do serviço público, devem exercer o cumprimento da norma legal, haja vista que, na forma prevista no artigo 236, caput da Constituição Federal, “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”.

 

4. Se dentre as atribuições impostas aos notários e registradores está a representação do Estado, com a finalidade dar forma legal e conferir presunção de autenticidade (“fé pública”) aos atos jurídicos extrajudiciais, não podem estes representantes descumprir normas jurídicas válidas sob o pretexto de que se “assemelham” a outras normas declaradas inconstitucionais.

 

5. Até que seja declarada expressamente a inconstitucionalidade das disposições do artigo 47 e 48 da Lei nº 8.212/91, não é facultado a qualquer pessoa deixar de cumpri-la por reputá-la inconstitucional e menos ainda aos delegatários do serviço público, na condição de representantes do Estado.

 

6. Agravo de Instrumento provido. [3]

No acórdão, o relator afirmou que os dispositivos da Lei nº 8.212/1991 não são idênticos aos da Lei nº 7.711/88. Enquanto a Lei nº 7.711/88 exigia a “certidão de quitação fiscal”, a Lei nº 8.212/1991 exige a “certidão de regularidade fiscal”, que, segundo o relator, são coisas distintas.

Assim, a liminar concedida em primeiro grau foi cassada, e a Receita Federal teria sido autorizada a compelir os cartórios a exigirem a CND de interessados para a prática de atos notariais e registrais. No entanto, isso não impede que os contribuintes – que não são partes na ação da ANOREG – questionem na justiça a exigência prevista Lei nº 8.212/1991.

Inconstitucionalidade da Exigência de CND

Em nossa opinião, a exigência prevista na Lei nº 8.212/1991 é inconstitucional. Como bem observado pelo Juiz da 9ª Vara Cível Federal de São Paulo, a Lei nº 8.212/1991 é, do ponto de vista material e teleológico, idêntica àquela declarada inconstitucional pelo STF.

A exigência da CND para a alienação ou oneração de bens imóveis ou direitos a eles relativos constitui uma sanção política, cuja intenção é “constranger o contribuinte, por vias oblíquas, ao recolhimento do crédito tributário”, exatamente como motivou a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 7.711/88 pelo STF.

Além disso, com todo respeito, a distinção feita pelo julgador no caso da ANOREG não se sustenta. Na prática, “Certidão de Quitação Fiscal” e “Certidão de Regularidade Fiscal” são essencialmente a mesma coisa. No âmbito federal, ambas as situações – quitação ou regularidade fiscal – são comprovadas por meio de um único documento: a Certidão de Débitos Relativos a Créditos Tributários Federais e à Dívida Ativa da União.

Todavia, vale reiterar: ainda que “Certidão de Quitação Fiscal” e “Certidão de Regularidade Fiscal” não fossem, na prática, a mesma coisa, a exigência de qualquer uma delas para fins de registro de contratos em cartório é inconstitucional, pois se caracteriza como uma sanção política.

Conclusão

Em suma, a exigência de CND para a realização de atos notariais e de registro, conforme prevista na Lei nº 8.212/1991, revela-se inconstitucional. A jurisprudência do STF é clara ao vedar a imposição de sanções políticas que, por vias oblíquas, constrangem o contribuinte ao pagamento de tributos. A similaridade material e teleológica entre as disposições da Lei nº 8.212/1991 e aquelas declaradas inconstitucionais pelo STF reforça a necessidade de afastar tal exigência.

A decisão recente que cassou a liminar concedida em primeiro grau não altera o entendimento de que a prática de exigir CND para a alienação ou oneração de bens imóveis configura uma medida coercitiva inaceitável. A distinção feita entre “Certidão de Quitação Fiscal” e “Certidão de Regularidade Fiscal” não se sustenta, pois ambas têm o mesmo efeito prático de comprovar a regularidade fiscal do contribuinte, sendo emitidas por meio do mesmo documento federal.

Dessa forma, é imperativo que o Judiciário continue a proteger os princípios constitucionais e o livre exercício de atividades econômicas. A equipe tributária do Teixeira Fortes Advogados Associados está à disposição para fornecer orientações e suporte jurídico necessário para aqueles que buscam defender seus direitos frente a essa exigência inconstitucional.

 

[1] Art. 47. É exigida Certidão Negativa de Débito-CND, fornecida pelo órgão competente, nos seguintes casos:
I – da empresa:
b) na alienação ou oneração, a qualquer título, de bem imóvel ou direito a ele relativo;
d) no registro ou arquivamento, no órgão próprio, de ato relativo a baixa ou redução de capital de firma individual, redução de capital social, cisão total ou parcial, transformação ou extinção de entidade ou sociedade comercial ou civil e transferência de controle de cotas de sociedades de responsabilidade limitada;
II – do proprietário, pessoa física ou jurídica, de obra de construção civil, quando de sua averbação no registro de imóveis, salvo no caso do inciso VIII do art. 30.
Art. 48. A prática de ato com inobservância do disposto no artigo anterior, ou o seu registro, acarretará a responsabilidade solidária dos contratantes e do oficial que lavrar ou registrar o instrumento, sendo o ato nulo para todos os efeitos.

[2] Autos nº 5019824-62.2023.4.03.6100, 9ª Vara Federal da Subseção Judiciária de São Paulo.

[3] TRF-3; Agravo de Instrumento nº 5031693-86.2023.4.03.0000; 1ª Turma; Rel. Desembargador Federal RENATO LOPES BECHO; julgado em 29/02/2024.

 

 

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