Publicado no site Consultor Jurídico, Estúdio Conjur, edição de 22 de agosto de 2024.
Segundo o “Relatório Justiça em Números 2023”, a preocupação com a ineficiência generalizada na cobrança dos créditos fiscais levou o presidente do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Luís Roberto Barroso, a estabelecer, entre as metas de sua gestão, que se encerrará em 2025, a de imprimir maior racionalidade aos processos judiciais.
De acordo com o citado relatório, tramitam no TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), mais de 12 milhões de execuções fiscais, que representam 56% do acervo de processos de primeiro grau, com uma taxa de congestionamento de 88%, ou seja, somente 12 processos, a cada 100 novos entrados, são baixados por ano. Esse grande número de litígios fiscais obviamente não se limita ao estado de São Paulo, repetindo-se, com variáveis próprias, em cada estado da Federação e nos níveis federal e municipais.
Números tão eloquentes representam um desafio para as pessoas políticas do estado brasileiro buscarem o recebimento dos créditos públicos, e impõem redobrada diligência por parte das procuradorias incumbidas da cobrança ou, como disse o ministro Barroso, “maior racionalidade”.
Em que pese sejam louváveis os conhecidos esforços da Procuradoria do Estado de São Paulo para recebimento dos créditos fiscais, parece-nos que certas diligências têm excedido os limites do Direito e da “racionalidade”. De fato, em alguns casos essa busca tem sido feita com base em argumentação perigosa e antijurídica.
Cenário muito frequente, sobre o qual dedicamos essas linhas, é o do devedor contumaz, sem patrimônio imobiliário ou ativos de fácil constrição (penhora), mas que, apesar de inadimplente para com o Fisco, mantém sua produção. A cena é comum a milhares de empresas brasileiras de pequeno e médio porte (PMEs), o que em boa medida ajuda a explicar os números do Relatório Justiça em Números 2023.
A condição econômica desse grupo de pequenas e médias empresas, marcadamente pela insuficiência de capital, faz com que a continuidade de suas operações dependa da oferta de crédito, grande parte dele suprido por Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), também chamados “fundos de recebíveis”, em operações de antecipação de receitas.
Cenário
No Brasil, operam atualmente cerca de 400 fundos de recebíveis no segmento multicedentes e multissacados, suprindo a necessidade de crédito de cerca de 40% de um total de 92 mil indústrias de porte médio, as quais empregam aproximadamente 8,5 milhões de pessoas no país. Ao setor industrial, some-se ainda o middle market do comércio e serviços, em que a participação dos FIDC é também muito expressiva.
Ainda, segundo dados disponíveis no site da CVM, esse universo de FIDC totaliza cerca de R$ 47 bilhões em ativos atualmente. Assumindo-se um prazo médio de 45 dias para o ciclo completo de concessão do crédito, vê-se que o volume operado é da ordem de R$ 400 bilhões ao ano.
Tanto esse universo de pequenas e médias empresas é altamente relevante para a economia e os empregos no país, quanto o é para elas o crédito de que necessitam para manterem-se em atividade. Contudo, no afã de perseguir o crédito tributário, algumas procuradorias passaram a arguir no foro uma tese preocupante, adotando uma interpretação a nosso ver teratológica do artigo 185 do CTN (Código Tributário Nacional).
Aqui e acolá, algumas procuradorias passaram a defender que as operações de antecipação de recebíveis — rectius, vendas de duplicatas e outros títulos — quando realizadas por empresas em débito para com o Fisco, encerrariam a fraude presumida do artigo 185 do CTN, eis que implicariam alienação de bens ou rendas. O dispositivo legal em questão diz:
“Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.”
Como as duplicatas e outros recebíveis são “bens ou rendas” do devedor, no entender da Procuradoria a fraude então se presumiria, e os fundos que financiaram seu capital de giro, antecipando receitas e, com rigor de verdade, aumentando a liquidez dessas empresas, seriam responsáveis pelo passivo fiscal delas. Com o devido respeito, a tese encerra verdadeira sandice.
Qualquer estudante de Direito que já tenha tido a oportunidade (e o prazer) de ler Carlos Maximiliano e outros doutrinadores que se dispuseram a escrever sobre o universo da hermenêutica jurídica, sabe que não é a partir de uma interpretação meramente literal da lei, isto é, segundo o significado comum das palavras do texto legal, que se diz o Direito nos casos concretos.
A interpretação meramente literal, que se afasta das demais regras da hermenêutica jurídica, é rasa e não serve ao Direito. Para além da literalidade, a aplicação do Direito demanda interpretação lógica, que busque a coerência interna da lei, isto é, sua relação não apenas com o texto legal, mas com o sistema jurídico como um todo; também é preciso fazer-se uma interpretação sistemática do texto legal, que observe a norma dentro do contexto do ordenamento jurídico e a sopese frente outras normas e princípios capazes de influenciar sua aplicação; e sobretudo, é preciso fazer-se uma interpretação teleológica, que foque na finalidade da norma e nos objetivos que o legislador pretendeu alcançar com a sua criação, compreendendo o chamado “espírito” da lei.
Artigo 185 do CTN
Pois bem. Ninguém que leia o artigo 185 do CTN dirá que o legislador quis impedir que uma empresa exerça suas atividades por estar em débito para com a Fazenda Pública. Se uma indústria possui débitos fiscais inscritos, isso obviamente não faz com que esteja impedida de realizar a venda de seus próprios produtos, até porque o pagamento de seu passivo fiscal dependerá de suas receitas de vendas.
Em outras palavras, é justamente da venda de produtos e serviços que advirá a riqueza econômica para que, ao fim e ao cabo, possa haver o pagamento dos tributos devidos. O dinheiro não virá de outro lugar senão da atividade capaz de gerar essa riqueza, e impedir a atividade é antijurídico e ilógico.
Nessa toada, tão óbvio quanto o direito de uma empresa com passivo fiscal inscrito continuar produzindo e vendendo suas mercadorias, é o direito dela de antecipar os recebíveis dessas vendas quando feitas a prazo, como é a praxe comercial no Brasil, a fim de restabelecer seu capital de giro.
O dinheiro antecipadamente ingressado no caixa dessa empresa devedora do Fisco aumenta sua liquidez e permite sua reaplicação na atividade produtiva. Vale dizer: se ninguém tem dúvida de que a venda de produtos ou serviços por um devedor fiscal não constitui fraude, tampouco o terá de que o recebimento antecipado dessas vendas não enseja nenhuma ilicitude.
A questão reside então em saber-se, afinal, de que “bens ou rendas” cuida o artigo 185 do CTN, segundo uma interpretação razoavelmente lógica, coerente, sistemática e conectada com a finalidade da norma. E o fundamento jurídico por trás da afirmação óbvia de que a venda da produção industrial, por um sujeito passivo com débito inscrito em dívida ativa, não constitui fraude fiscal (pese a literalidade da lei em sentido oposto), é exatamente o mesmo que confirma que a interpretação de que há fraude na antecipação dos recebíveis de tais vendas é bizarra: por imperativo de ordem lógica, os itens do ativo circulante do devedor não estão abrangidos pelo conceito de bens ou rendas do artigo 185 do CTN.
Indiscutivelmente, da mesma forma que o estoque dos bens do devedor integra seu ativo circulante, também o integram as duplicatas a receber pelas vendas das mercadorias em estoque. Por isso, é de todo irrazoável pretender-se que a venda de um ou de outro caracterize fraude, porque o artigo 185 do CTN não tem aplicação, nem poderia ter, quando se trate de venda de itens do ativo circulante, pois isso inviabilizaria a própria atividade econômica da devedora, em prejuízo, inclusive, do Fisco!
Interpretação em sentido contrário, meramente literal, desafia a lógica jurídica. Essa opinião é também esposada pelo professor Roque Antonio Carraza, em judicioso parecer encomendado recentemente pela Anfidc (Associação Nacional dos Participantes em Fundos de Investimento em Direitos Creditórios Multicedentes e Multissacados), em que concluiu que a alienação capaz de ensejar a fraude de execução, de que trata o artigo 185 do CTN, não alcança os itens do ativo circulante da devedora fiscal.
O devedor pode (e deve) vender as mercadorias que produz, pode esperar o vencimento das faturas para receber (se tiver caixa suficiente para isso), ou pode antecipar esses recebíveis com um FIDC ou uma casa bancária, reinjetando seu capital na produção.
Sucede que, em sentido contrário ao que se ora afirma, as Procuradorias alegam que a questão já teria sido resolvida com o julgamento do Recurso Repetitivo objeto do Tema 290 do Superior Tribunal de Justiça (STJ, REsp 1.141.990/PR). E nesse sentido cometem a nosso ver dois equívocos: o primeiro, quanto à interpretação desarrazoada do artigo 185 do CTN, que, como se demonstrou, não proíbe a venda de mercadorias e demais itens do ativo circulante do devedor fiscal, o que seria ilógico e antieconômico; o segundo, quanto ao conteúdo e alcance do Tema Repetitivo 290 do STJ.
Acerca desse segundo aspecto, é preciso fazer a distinção entre o que foi decidido pelo STJ no julgamento Repetitivo objeto do Tema 290, e a questão relacionada à antecipação de recebíveis de vendas.
De longa data diversos doutrinadores têm sustentado que o nascimento da Súmula Vinculante e dos Recursos Repetitivos no Brasil situaram-no a meio-caminho entre as famílias da common law e da civil law. E se o Direito Brasileiro passou a ostentar traços típicos do sistema anglo-saxão, torna-se de fundamental importância que, quando necessário, seja aplicada a técnica do distinguishing lá presente, mas prevista também em nossa própria legislação processual, na parte que trata dos fundamentos da sentença (CPC, artigo 489, § 1º, VI).
O artigo 489, § 1º, VI, do CPC, considera não fundamentada a decisão judicial que “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. A distinção, no tema em comento, se dá pela via inversa, isto é, de forma a demonstrar que o precedente não se aplica à pretensão fazendária.
De fato, a distinção nada mais é do que uma técnica de confronto, mediante a qual o juiz faz o cotejo do precedente com o caso concreto, verificando os elementos objetivos de uma demanda. Esse confronto revela que o que foi decidido no Tema 290 não autoriza o entendimento de que a antecipação de recebíveis, mediante venda de duplicatas ou outros itens do ativo circulante, implicaria a fraude do artigo 185 do CTN, muito menos responsabilidade do adquirente desses títulos pelo pagamento das dívidas tributárias do devedor fiscal.
Veja-se que a questão submetida a julgamento por ocasião do Recurso Repetitivo em questão foi “a configuração ou não de fraude à execução fiscal diante da boa-fé do terceiro adquirente, em face da inexistência de registro de penhora do bem alienado, tendo em vista a Súmula 375 do STJ.” E a Tese firmada no julgamento, foi a seguinte:
“Se o ato translativo foi praticado a partir de 09.06.2005, data de início da vigência da Lei Complementar n.º 118/2005, basta a efetivação da inscrição em dívida ativa para a configuração da figura da fraude.”
Ora, o escopo do Tema do Repetitivo cingiu-se à “boa-fé do terceiro adquirente, em face da inexistência de registro de penhora do bem alienado”; e para decidi-lo, quanto ao aspecto temporal da inexistência de registro de penhora do “bem alienado”, o repetitivo partiu da premissa, isto é, presumiu, que o “bem alienado” encontrava-se entre aqueles que o devedor não pode alienar. Ou seja, foi a partir da premissa de que se tratava de bem que não poderia ser alienado — vale dizer, que não se trata de mercadoria ou qualquer outro item do ativo circulante — é que o acórdão resolveu a questão da boa-fé do terceiro adquirente.
Mas se o bem alienado integra o ativo circulante do devedor, como as mercadorias do estoque (atividade principal), e por extensão as duplicatas que representam os créditos dessas vendas, não há, logicamente, subsunção ao conceito legal de “bens ou rendas” a que alude o artigo 185 do CTN, e, portanto, nenhuma correlação com julgamento do Recurso Repetitivo em questão e o Tema 290.
É importante salientar que a própria legislação tributária delimita a fraude à execução à venda dos ativos não circulantes, como ocorre, por exemplo, nos casos da Medida Cautelar Fiscal, prevista na Lei 8.397/92; da averbação pré-executória, de que trata a Lei 13.606/18; e da legislação que rege as certidões negativas das incorporadoras, dentre outros.
Em conclusão, se duplicatas e outros itens do ativo circulante puderem ser considerados bens ou rendas inalienáveis, para os fins do artigo 185 do CTN, estar-se-á chancelando uma extravagante e antijurídica interpretação literal que excede em muito os limites do razoável, e em decorrência disso emergirá no País uma nova realidade nos mercados de FIDC e desconto bancário, com impactos imensuráveis na economia e no mercado de crédito, muito especialmente aquele fornecido às pequenas e médias empresas, inclusive aquelas em recuperação judicial — todas com passivos fiscais — eis que estarão impedidas de antecipar receitas, o que não faz nenhum sentido nem agrega a racionalidade preconizada pelo ministro Barroso na difícil tarefa de recebimento dos créditos fiscais.
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