No setor imobiliário, empresas incorporadoras e construtoras frequentemente enfrentam a necessidade de capital de giro para dar continuidade às suas atividades, especialmente em um mercado caracterizado pela longa duração dos ciclos de vendas e construção. Uma forma comum de obter esse capital é por meio da antecipação de recebíveis imobiliários.

Essa antecipação costuma envolver a cessão de créditos a instituições financeiras, fundos de investimento, companhias securitizadoras e empresas de fomento mercantil. Trata-se de operação que permite à incorporada receber, de forma antecipada, valores relativos a contratos de compra e venda de imóveis, proporcionando-lhe liquidez imediata.

Os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (“FIDCs”), por exemplo, são veículos financeiros criados para adquirir todo tipo de direitos creditórios, incluindo créditos imobiliários. A transmissão dos créditos pode ocorrer por meio de CESSÃO PLENA, nos termos no art. 286 do Código Civil, ou como CESSÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA.

A cessão de créditos implica a compreensão dos limites da responsabilidade do cessionário, principalmente quanto às obrigações do incorporador ou construtor.

Ao efetuar a cessão de recebíveis imobiliários, transfere-se apenas o direito de crédito, não se substituindo o vendedor original (incorporador ou construtor) pelo cessionário.

O §12 do art. 31-A da Lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964, que regula as incorporações imobiliárias, dispõe expressamente que a cessão incide apenas sobre os direitos creditórios que o incorporador ou construtor detém em relação aos compradores, mas não transfere as responsabilidades contratuais do cedente para o cessionário, conforme destacado abaixo:

“§12. A contratação de financiamento e constituição de garantias, inclusive mediante transmissão, para o credor, da propriedade fiduciária sobre as unidades imobiliárias integrantes da incorporação, bem como a cessão, plena ou fiduciária, de direitos creditórios decorrentes da comercialização dessas unidades, não implicam a transferência para o credor de nenhuma das obrigações ou responsabilidades do cedente, do incorporador ou do construtor, permanecendo estes como únicos responsáveis pelas obrigações e pelos deveres que lhes são imputáveis”.

Assim, pelo texto da lei, as obrigações do incorporador, como a entrega do imóvel conforme o estipulado no contrato de compra e venda, continuam sendo de sua responsabilidade, permitindo ao cessionário receber os valores devidos pelos compradores sem que isso implique uma mudança nas condições do contrato ou nas responsabilidades do incorporador, incluindo a entrega da unidade habitacional ou a restituição de valores em caso de rescisão ou inadimplemento.

Essa interpretação restritiva é reforçada por diversos precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“ILEGITIMIDADE PASSIVA. Rescisão de contrato de compra e venda de imóvel por inadimplemento das vendedoras. Corré True Securitizadora S.A. que atuou apenas como cessionária dos créditos imobiliários. Inexistência de responsabilidade por eventual atraso na entrega da obra. Ilegitimidade passiva configurada. Preliminar acolhida. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. LOTEAMENTO. Rescisão. Alienação fiduciária do imóvel que não obsta a rescisão do contrato. Credora fiduciária que se confunde com a vendedora, vinculando as duas obrigações. Atraso na conclusão das obras de infraestrutura. Contrato regido pela Lei nº 6.766/79. Atraso, contudo, que não deu causa à rescisão. Pedido de rescisão um ano e meio anos após a autorização de construção no loteamento pela Prefeitura. Devolução dos valores pagos pelos compradores, com direito de um percentual de retenção pela vendedora. Súmulas nº 1, 2 e 3, TJSP. Percentual de retenção fixado em 20% dos valores pagos. Precedente do STJ. Correção monetária desde os desembolsos e juros de mora a partir do trânsito em julgado. Multa e encargos contratuais. Não condenação das rés, pois não deram causa à rescisão. Indenização pela ocupação. Lote sem edificação. Indenização indevida. Sentença reformada. Sucumbência recíproca. Recurso da ré True Securitizadora S.A. provido e recurso das rés Empreendimentos Imobiliários Damha Assis I SPE Ltda. e Boa Vista Empreendimentos Imobiliários SPE de Assis Ltda. parcialmente provido” [1].

 

“Compromisso de compra e venda. Ação de rescisão contratual c.c. restituição. Sentença de parcial procedência. Irresignação das partes. Recurso da ré. Ré que não pode ser equiparada à loteadora/incorporadora e tampouco compõe grupo econômico com as promitentes vendedoras. Securitizadora que não pode ser responsabilizada pela restituição dos valores pagos pelos autores, a despeito dos arts. 7º, p. único e 25, §1º do CDC. Incidência do art. 31-A, §12 da Lei nº 4.591/64. Precedentes desta Corte. Ação improcedente em relação à securitizadora. Recurso adesivo dos autores. Indevida retenção de valores a título de comissão de corretagem. Desatendimento aos requisitos estabelecidos no julgamento do Tema 938 pelo STJ. Percentual de retenção dos valores pagos pelos promitentes compradores mantido em 20%. Recurso da ré provido e recurso adesivo dos autores parcialmente provido” [2]. 

 

“Ação de rescisão contratual c/c restituição de quantias pagas. Contrato de compra e venda de imóvel. Pretendida responsabilização do credor fiduciário. Impossibilidade. Agente financeiro que é parte ilegítima para responder pelo distrato, em razão da desistência do promitente comprador. Incidência do artigo 31-A, par. 12, da Lei nº 4.591/64. Precedentes jurisprudenciais. Recurso provido para se reconhecer de ofício a ilegitimidade passiva do Apelante” [3].

 

“Compra e venda. Ação de rescisão contratual c.c. restituição. Sentença de parcial procedência. Irresignação das partes. Recurso da ré. Ré que não pode ser equiparada à loteadora/incorporadora e tampouco compõe grupo econômico com as promitentes vendedoras. Securitizadora que não pode ser responsabilizada pela restituição dos valores pagos pelos autores, a despeito dos arts. 7º, p. único e 25, §1º do CDC. Incidência do art. 31-A, §12 da Lei nº 4.591/64. Precedentes desta Corte. Ação improcedente em relação à securitizadora. Recurso dos autores. Autores minimamente sucumbentes em relação às corrés, que devem suportar os ônus sucumbenciais. Recurso da ré provido, provido em parte o dos autores” [4].

O Superior Tribunal de Justiça também corrobora esse entendimento, afastando a responsabilidade do cessionário nos casos em que ele não participa da cadeia de consumo ou da execução do empreendimento, mas tão somente atua como cessionário dos créditos:

“Com efeito, conforme as razões dispendidas no recurso especial e ao contrário do contido no acórdão estadual, destaco que é incontroverso que a parte recorrente não integrou a “cadeia de consumo”, visto que não participou em momento algum do fornecimento do objeto do contrato de compromisso de compra e venda de imóvel na planta, não tendo sequer prestado serviço acessório ao promissário comprador.
Isso porque a relação referente à cessão/antecipação de créditos (securitização de recebíveis) é firmada entre o cedente, credor originário, e o cessionário, credor “atual”, sendo devido ao cedido apenas a sua notificação comunicando a respeito da operação para fins de torná-la eficaz a oponível a esse, conforme disposto no artigo 290 do diploma civil. (REsp 1726161/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 6/8/2019, DJe 3/9/2019)
Noutros termos, depreende-se que o objeto do contrato de cessão/antecipação de créditos é não somente estranho à relação consumerista e ao próprio objeto do contrato de promessa de compra de venda em debate, mas também posterior e independente, sendo incabível a responsabilização do recorrente pelo atraso na entrega do imóvel.
A manutenção do entendimento esposado pelo Tribunal de origem implicaria, por via transversa, a própria desconstituição do contrato regularmente firmado de antecipação de crédito firmado entre duas pessoas jurídicas, visto que a responsabilização solidária pela restituição dos valores invalidaria a alocação de riscos feita pelos participantes da operação, ínsita e essencial à natureza do contrato mencionado.
(…) Em face do exposto, reconsidero a decisão e dou provimento ao recurso especial para reconhecer a ilegitimidade passiva e extinguir, sem resolução do mérito, o processo em relação ao ora recorrente, nos moldes do artigo 485, VI, do novo Código de Processo Civil” [5].

Entretanto, apesar da clareza da previsão legal e do entendimento jurisprudencial majoritário, o TJSP já atribuiu as responsabilidades do incorporador ao cessionário, anotando que as entidades envolvidas – incorporadoras, securitizadoras e FIDCs –, como participantes de uma única operação integrada, teriam legitimidade passiva, mesmo quando sua atuação se restringe à cessão de crédito:

“AÇÃO DE RESCISÃO DE CONTRATO CUMULADA COM RESTITUIÇÃO DE QUANTIAS PAGAS. Sentença de procedência. Promessa de compra e venda envolvendo multipropriedade de unidade em empreendimento denominado “Ondas Praia Resort”. Preliminares. Ilegitimidade passiva. Descabimento. Legitimidade passiva da companhia securitizadora que recebeu diretamente as prestações quitadas pelo consumidor, tendo integrado, portanto, a cadeia de fornecimento. Incorreção do valor da causa. Rejeição. Valor da causa que, em ação em que se pretende rescindir contrato e restituir valores pagos corresponde ao valor do contrato. Inteligência do art. 292, II, do CPC. Mérito. Rescisão contratual. Direito da parte autora. Tendo a corré apelante percebido valores pelo negócio jurídico em questão, induvidosa a sua responsabilidade solidária com as demais corrés no caso concreto, pois integrou a cadeia de prestadores de serviços (art. 7º, parágrafo único, CDC). Sentença mantida. Recurso da Forte Securitizadora S/A desprovido” [6]. 

 

“COMPRA E VENDA DE LOTE. RESCISÃO CONTRATUAL. DESISTÊNCIA DO COMPRADOR. Insurgência de ambas as partes contra sentença de parcial procedência. Reforma parcial. 1. ILEGITIMIDADE PASSIVA. Não acolhimento. Cadeia de fornecedores responde solidariamente, nos termos do CDC. Corré True Securitizadora, no mais, que não responde apenas para as obrigações inerentes à construtora e incorporadora. Responsabilidade no que tange à restituição de parcelas que foram pagas em seu favor. Meandros da atividade empresarial que não pode servir para confundir o consumidor. Precedentes. 2. RESCISÃO DO CONTRATO. Culpa do comprador. Direito de retenção da vendedora. Possibilidade de retenção entre 10% e 25% das quantias pagas. Sentença que fixou um percentual de 25% sobre os valores pagos. Valor excessivo considerando-se as peculiaridades do caso. Redução para 10%, além dos valores de IPTU no período em que o autor exerceu a posse. Honorários advocatícios fixados com base na condenação. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS” [7].

Não há dúvida de que a rescisão do contrato de compra e venda envolve: (i) a extinção do crédito cedido, comprometendo o lastro de eventuais títulos imobiliários emitidos (CRI, por exemplo); (ii) o retorno do imóvel ao patrimônio do incorporador; e (iii) a responsabilidade pela devolução dos valores pagos ao comprador.

Sobre essas implicações, Melhim Namem Chalhub, em sua obra Alienação Fiduciária, destaca a importância de se distinguir as responsabilidades do cedente e do cessionário em caso de resolução contratual, uma vez que o cessionário não possuí vínculo jurídico direto com o comprador.

Os riscos envolvidos na rescisão são (ou deveriam ser), evidentemente, assumidos pelo vendedor do imóvel (incorporador), e não pelo financiador do empreendimento. Não há razões jurídicas, sequer econômicas, para se exigir do cessionário a devolução de valores pagos pelo comprador sem que ele tenha adquirido a propriedade do imóvel. O cessionário adquire apenas os direitos creditórios, sem qualquer titularidade sobre o bem objeto do contrato. Atribuir-lhe a obrigação de restituir valores pagos configura uma injustiça e carece de fundamento legal, pois transfere ao cessionário riscos e responsabilidades que, por força do parágrafo 12 do art. 31-A da Lei nº 4.591/64, competem exclusivamente ao incorporador.

Dessa forma, a formação de uma jurisprudência uniforme, em conformidade com a legislação vigente, que distinga claramente as responsabilidades do cedente (incorporador ou loteador) e do cessionário (FIDC ou securitizadora, são exemplos) em casos de resolução contratual, é fundamental para garantir a segurança jurídica no mercado de crédito imobiliário. Tal uniformidade é imprescindível para preservar a integridade das operações de securitização, estimular novos investimentos e assegurar a estabilidade e o crescimento sustentável do setor.

 

[1] TJSP, Apelação Cível nº 1000067-40.2019.8.26.0047, Relatora Desembargadora Fernanda Gomes Camacho, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de julgamento: 23/10/2019.

[2] TJSP, Apelação Cível nº 1041692-48.2021.8.26.0576, Relator Desembargador Alexandre Marcondes, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de julgamento: 25/04/2023.

[3] TJSP, Apelação Cível nº 1035438-54.2016.8.26.0602, Relator Desembargador João Pazine Neto, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de julgamento: 05/08/2020.

[4] TJSP, Apelação Cível nº 1001323-16.2020.8.26.0101, Relator Desembargador Alexandre Marcondes, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de julgamento: 06/06/2023.

[5] STJ, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.769.501/SE (2018/0251480-4), Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Data de julgamento: 24/08/2020.

[6] TJSP, Apelação Cível nº 1004642-96.2023.8.26.0291, Relator Desembargador Milton Carvalho, 36ª Câmara de Direito Privado, Data de julgamento: 25/06/2024.

[7] TJSP, Apelação Cível nº 1043298-48.2020.8.26.0576, Relator Desembargador Carlos Alberto de Salles, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de julgamento: 28/03/2023.

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