O risco tributário da distribuição desproporcional de lucros

02/04/2025

Por Romario Almeida Andrade

Com o aumento da fiscalização sobre estruturas societárias e práticas de remuneração de sócios, a distribuição desproporcional de lucros passou a ser alvo de questionamentos, especialmente quanto à possibilidade de sua requalificação como doação disfarçada, sujeita à incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).

A distribuição desproporcional de lucros é uma alternativa adotada por muitas empresas para remunerar os sócios de acordo com a contribuição de cada um para os resultados sociais. Seu fundamento legal está no art. 1.007 do Código Civil, segundo o qual os sócios participam dos lucros na proporção de suas quotas, salvo estipulação em contrário. A ressalva final desse dispositivo permite que a divisão dos lucros seja feita de forma diversa da participação no capital social.

Na prática, os sócios costumam deliberar que a distribuição observará critérios vinculados ao desempenho individual de cada um (como tempo investido, papel estratégico na gestão, ou contribuição técnica específica), em vez de seguir a proporção das quotas. Essa sistemática pode proporcionar uma divisão mais justa dos lucros. Por exemplo, permite que um sócio minoritário receba uma parcela maior dos resultados se tiver sido diretamente responsável por contratos relevantes para a sociedade.

Entretanto, a despeito da legalidade da prática, o Fisco tem questionado algumas dessas distribuições, sob o argumento de que configurariam doações disfarçadas, sujeitas à incidência do ITCMD. O entendimento do Fisco nesses casos é de que, quando não há uma justificativa negocial, a distribuição desproporcional deve ser tratada como uma doação sujeita à tributação. Em São Paulo, por exemplo, a alíquota do ITCMD é de 4%.

Para ilustrar, imagine uma sociedade com três sócios: “A” (50% das quotas), “B” (30%) e “C” (20%). Em determinado exercício, os sócios deliberam distribuir R$ 1 milhão de lucros, decidindo que B receberá 50%, enquanto A e C dividirão o restante. Embora essa divisão seja juridicamente permitida, ela pode ser questionada pelo Fisco se não houver justificativa negocial para que B — detentor de apenas 30% das quotas — tenha sido beneficiado com metade dos lucros.

O Fisco tem concentrado esforços na autuação de sócios que recebem parcelas expressivas dos lucros em desacordo com sua participação societária, especialmente nos casos em que não há justificativa plausível. As autuações tendem a se intensificar quando há vínculo familiar entre os sócios, o que pode evidenciar o caráter de liberalidade da operação — elemento essencial para a configuração da doação.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) tem confirmado autuações em casos em que a diferença entre os lucros distribuídos e a participação societária é substancial, sem que haja justificativa negocial. Em decisão recente, o TJSP manteve a cobrança de ITCMD contra um sócio que detinha apenas 1% das quotas, mas recebeu 45% dos lucros sem apresentar motivação negocial:

“APELAÇÃO MANDADO DE SEGURANÇA – ITCMD DOAÇÃO TRAVESTIDA DE DISTRIBUIÇÃO DESPROPORCIONAL DE DIVIDENDOS – IMPOSSIBILIDADE DE AFASTAMENTO DA TRIBUTAÇÃO REFERENTE À DOAÇÃO (…) a doação difere da distribuição desproporcional de lucros lícita em razão da liberalidade espontânea estar presente na primeira situação e o propósito negocial na segunda ausente, no caso, a razão negocial, e presente a liberalidade espontânea, assim considerado o animus donandi, de modo que a transferência do patrimônio da sociedade para os sócios (não administradores à época), ainda que com aparência de distribuição desproporcional de lucros, caracteriza-se como doação causae debendi válida para a lavratura do AIIM nº 4.152.021-0 (…) Sentença de parcial concessão da ordem de segurança mantida. Recurso do impetrante desprovido.”[1]

O contribuinte alegou que a distribuição desigual seria legítima, pois autorizada pela legislação. Contudo, o Fisco sustentou — e o TJSP concordou — que a validade da distribuição desproporcional dos lucros está condicionada à existência de propósito negocial, o que não se verificava no caso concreto.

Os contribuintes devem ficar atentos para o fato de que alguns fatores aumentam significativamente o risco de autuação:

a) ausência de justificativa negocial: quando o sócio beneficiado não demonstra os motivos que justificam a distribuição desproporcional;

b) desproporção excessiva: quando a participação nos lucros é muito superior à quota societária;

c) vínculo familiar entre sócios: quando a distribuição favorece cônjuges, filhos ou outros parentes, sem que haja fundamento empresarial;

d) mudanças societárias recentes: inclusão de novos sócios com participação reduzida que, logo em seguida, recebem lucros expressivos;

e) falta de registro formal e contábil: ausência de ata ou documentação que fundamente a deliberação;

f) distribuição inconstante: ausência de padrão ou critérios recorrentes que demonstrem coerência empresarial.

No contexto da Reforma Tributária, houve uma tentativa de regulamentar a distribuição desproporcional de lucros. O Projeto de Lei (PL) nº 108/2024, em sua versão original, dispunha que seriam consideradas doações as operações societárias que gerassem benefícios desproporcionais a sócios, sem justificativa negocial — incluindo distribuição desigual de lucros, cisões desproporcionais e alterações de capital com valores não equivalentes.

A proposta concedia ao Fisco uma margem ampla de interpretação, o que gerou críticas quanto à segurança jurídica. O conceito de “justificativa negocial”, por sua natureza subjetiva, pode variar de acordo com o caso concreto e a percepção do agente fiscal, o que ampliaria a litigiosidade sobre o tema. A proposta de regulamentação da distribuição desproporcional de lucros foi suprimida do texto final aprovado pela Câmara dos Deputados.

Enfim, a tributação da distribuição desproporcional de lucros ainda é uma questão controvertida e sujeita à interpretação caso a caso. Empresas que adotam esse modelo devem assegurar que a prática esteja lastreada por fundamentos negociais claros, documentada formal e contabilmente, e amparada por critérios consistentes. A adoção de boas práticas pode minimizar — ou até eliminar — o risco de autuação indevida pelo ITCMD.

 

[1] Recurso de apelação nº 1089011-58.2023.8.26.0053, julgado pela 4ª Câmara de Direito Público em 16/12/2024, Rel. Des. Paulo Barcellos Gatti.

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